A denúncia a seguir transcrita foi encaminhada em 28 de outubro de 2009 à 3ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsável por tratar da Defesa do Consumidor junto à Procuradoria Geral da República.
Sua divulgação tem o único intuito de compelir as autoridades a apurarem as manipulações de preços levadas a efeito na comercialização de gases medicinais e industriais no país.
É de se ressaltar que, no final de 1998, a empresa White Martins, sob a alegação de estar sendo difamada, moveu uma queixa-crime contra o autor da presente denúncia, baseada no fato dele ter divulgado pela internet semelhantes denúncias feitas às autoridades competentes. A empresa – apesar de ter como advogado o renomado ex Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos – não obteve êxito.
Inconformada, a White Martins recorreu da sentença que absolveu o autor daquelas denúncias (que é o mesmo autor desta). Novo fracasso. No Acórdão por meio do qual, por unanimidade, os Desembargadores da Segunda Turma Criminal do Distrito Federal confirmaram a sentença absolutória, lê-se: “Manter uma página na internet visou ampliar a divulgação dos fatos, para compelir as autoridades a tomar providências. In casu, não ficou evidente o dolo específico de difamar, pois agiu o Apelado com o fim de noticiar às autoridades competentes possíveis irregularidades perpetradas pela empresa White Martins, notícias estas já veiculadas pela imprensa, originando procedimentos judiciais. Não há como condenar uma pessoa por crime de difamação, por ter divulgado e disponibilizado informações de fatos notoriamente conhecidos. Esta conduta nada mais é do que o direito de um cidadão em ver investigadas possíveis irregularidades praticadas por quem quer que seja”.
A seguir, a íntegra da denúncia encaminhada à 3ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal:
Há décadas, a empresa White Martins vem lesando implacavelmente o consumidor brasileiro. Ela lesa o consumidor manipulando o preço de seus produtos – superfaturando ou subfaturando, de acordo com sua conveniência.
Cumpre esclarecer o fato de serem ilícitos dois procedimentos literalmente antagônicos, o superfaturamento e o subfaturamento de preços. Ao superfaturar seus preços, a empresa se locupleta lesando o consumidor; o lucro auferido em decorrência do superfaturamento é imediato. Ao subfaturar seus preços, o objetivo da empresa não é tão evidente: o subfaturamento é praticado com a finalidade de aniquilar a concorrência para que, numa oportunidade futura, seja facilitado o aumento arbitrário de preços. Praticamente, o subfaturamento é a constatação de um futuro superfaturamento.
Para se comprovar a exploração dos consumidores em geral (privados e públicos), basta uma vista no processo nº. 08012.009888/2003-70, por meio do qual a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE) pediu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) a aplicação de pena máxima contra a White Martins e outras empresas por crime de formação de cartel.
É de se destacar, no entanto, que – apesar da riqueza dos detalhes contidos em seus cerca de 20 volumes – o processo encaminhado pela SDE ao CADE não contém casos específicos de manipulação de preços, como os inacreditáveis casos que serão comprovados na presente denúncia.
Ninguém pode ter qualquer dúvida sobre a gravidade da situação: ao manipular os preços de seus produtos a níveis extremamente abusivos, a White Martins demonstra absoluto menosprezo pelas autoridades responsáveis pela defesa do consumidor brasileiro.
Objetivando evitar dispersão de informações, a presente denúncia tratará apenas da manipulação de preços contra hospitais públicos – a mais hedionda das falcatruas cometidas pela White Martins, responsável por dilapidar os recursos que seriam destinados a minorar o sofrimento e a salvar vidas de nossos carentes concidadãos. Para melhor entendimento, os casos apresentados serão destacados e enumerados, como a seguir.
1 – Superfaturamentos contra o Hospital Central do Exército (HCE)
Nas licitações realizadas para atender o seu consumo nos anos de 1995, 1996, 1997, 1998 e 1999, o HCE contou com propostas de preços de uma única fornecedora, a White Martins. Somente a partir do ano 2000 a virtual exclusividade da White Martins foi quebrada, com o comparecimento de diversos concorrentes nas licitações.
Nada mais perfeito para se comprovar o desmoralizante nível dos superfaturamentos que uma simples comparação: a comparação dos preços praticados pela White Martins nos cinco anos em que ela “concorreu” sozinha com os preços propostos pela mesma empresa e pelas outras que participaram das licitações realizadas pelo HCE logo após a quebra da exclusividade da White Martins, ocorrida no ano 2000.
O seguinte quadro de preços – que, para maior clareza, só contempla os produtos Oxigênio Líquido e Óxido Nitroso, gases medicinais responsáveis por cerca de 90% do valor licitado – comprova, de maneira impressionante, o maior superfaturamento continuado que se tem notícia em nosso país.
PRODUTO 1995 1996 1997 1998 1999 2000(A) 2000(B)
Oxigênio Líquido (R$/m3) 7,10 7,10 7,80 7,80 4,97 1,63 1,35
Óxido Nitroso (R$/kg) 28,80 28,80 31,00 31,00 21,00 21,00 12,45
Com relação ao quadro acima, fazem-se necessárias as seguintes observações: 1- nos anos de 1995, 1996, 1997, 1998 e 1999 a White Martins “concorreu” sozinha; 2- os valores correspondentes a 2000 (A) são os da Proposta de Preços da White Martins; 3- os valores correspondentes a 2000 (B) são os da Proposta de Preços da vencedora; 4- em 1999, a White Martins estava nas manchetes, acusada de superfaturamento nos Hospitais Federais do Rio de Janeiro, o que deve ter motivado a moderação em seu superfaturamento nesse ano; 5- em 2000, apesar de ter proposto R$ 1,63 no Oxigênio Líquido, produto que vendia a R$ 7,80 em anos anteriores, a White Martins foi derrotada; 6- em 2000, apesar de ter proposto R$ 21,00 no Óxido Nitroso, que vendia a R$ 31,00 em anos anteriores, a White Martins foi derrotada.
É de se ressaltar que os superfaturamentos praticados pela White Martins contra o HCE originaram uma denúncia ao TCU. Contudo, por não se ter, à época da denúncia, os dados referentes aos anos de 1995 e 1996, a mesma foi limitada aos anos de 1997, 1998 e 1999. Tal denúncia foi aceita pelo TCU, mesmo diante do fato de já estarem aprovadas pelo órgão as contas do HCE relativas aos anos em questão. A partir dela, instaurou-se o Processo nº. TC 012.552/2003-1, que confirmou a prática de superfaturamentos. O TCU calculou em R$ 6.618.085,28 o valor cobrado a maior. A decisão do Relator foi adotada pelo Acórdão nº. 1129/2006-TCU-Plenário.
2 – Manipulação de preços no Instituto Nacional do Câncer (INCA)
O acontecido no INCA merece lugar de destaque entre as mais revoltantes manipulações de preços praticadas contra nossos miseráveis hospitais públicos. No final da década de 90, a direção do hospital acusou a White Martins de estar se locupletando com os recursos que seriam destinados a salvar vidas de pacientes com câncer. Poucos anos depois, em meados de 2006, a White Martins subfaturou para o órgão de maneira afrontosa. Ou seja, nesse curto espaço de tempo, a White Martins não só superfaturou, como também subfaturou para o mesmo órgão.
Relativamente ao superfaturamento, nada mais chocante que a acusação feita pelo então Vice-Diretor do Hospital do Câncer, José Kogut. Foram as seguintes as palavras do dr. Kogut: “Na época em que denunciamos os preços exorbitantes, teve um representante da empresa (White Martins) que veio ao nosso gabinete. Eu disse que aquele não era o papel de um homem decente. Que ele estava matando pacientes com câncer”. (O Globo, 10 de julho de 1999).
Quanto ao subfaturamento, o mesmo foi antológico. Em licitação realizada em maio de 2006, a White Martins cobrou do INCA R$ 0,68 por metro cúbico de Oxigênio Líquido, preço dez vezes menor que os R$ 7,10 cobrados do HCE dez anos antes, em 1996. Na mesma licitação de maio de 2006, a White Martins cobrou do INCA R$ 7,25 por quilograma de Óxido Nitroso, preço incrivelmente inferior aos R$ 28,80 cobrados do HCE dez anos antes. Ressalte-se que ambos hospitais (o HCE e o INCA) estão localizados na mesma cidade, Rio de Janeiro.
Ninguém pode negar: os abusivos valores acima apresentados justificam plenamente a afirmativa segundo a qual a White Martins “demonstra absoluto menosprezo pelas autoridades responsáveis pela defesa do consumidor brasileiro”.
3 – O caso do Hospital Público Municipal de Macaé (HPM)
As fraudulentas aquisições de gases medicinais realizadas pelo HPM foram denunciadas em 27 de janeiro de 2009 ao Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Cláudio Soares Lopes, e originaram o Inquérito Civil nº 035/2009/CID/MCE.
Basicamente, a denúncia que originou citado Inquérito analisa três diferentes aspectos: as aquisições realizadas no período compreendido entre a inauguração do HPM (março de 2004) e a fraudulenta licitação emergencial ocorrida em junho de 2005; os preços cobrados pela vencedora da fraudulenta licitação emergencial de junho de 2005 (White Martins); os preços cobrados pela vencedora da licitação pública realizada em fevereiro de 2006 (White Martins).
Quanto às aquisições de gases medicinais realizadas entre a inauguração do HPM e a licitação emergencial de junho de 2005, nada é possível afirmar, em decorrência do fato de a prefeitura de Macaé não ter atendido o pedido de cópias dos documentos comprobatórios de tais aquisições. Porém, razões existem para supor que foi o período no qual ocorreram os preços mais elevados. Ressalte-se que não surtiu efeito nem mesmo o fato de a Justiça de Macaé ter deferido um mandado de segurança (impetrado em abril de 2008) para obrigar o prefeito municipal Riverton Mussi a entregar os documentos relativos às citadas aquisições.
Com relação à diminuição dos preços praticados pela White Martins (da licitação emergencial de junho de 2005 para a Tomada de Preços FMHM Nº. 001/2006, realizada em fevereiro de 2006), são apresentados a seguir os valores dos diversos itens licitados: Oxigênio gás cilindro (R$3,00 – R$2,00); Oxigênio Carga (R$10,00 – R$2,00); Oxigênio Líquido (R$1,60 – R$0,90); Óxido Nitroso (R$28,00 – R$9,00); Nitrogênio (R$15,00 – R$3,00); Óxido Nítrico (R$680,00 – R$250,00); Ar Medicinal (R$6,50 – R$3,00); Dióxido de Carbono (R$25,00 – R$9,00) e Argônio (R$95,00 – R$9,00).
É de se destacar que a Proposta de Preços vencedora da Tomada de Preços FMHM Nº. 001/2006, realizada em fevereiro de 2006, foi a da White Martins, com o valor total de R$ 149.434,00. Para efeito de comparação, seria de R$ 302.115,00 o valor total de uma Proposta de Preços que tivesse os valores unitários pagos à mesma White Martins na fraudulenta licitação emergencial realizada em junho de 2005. Em outras palavras, uma compra emergencial fraudulenta teve, na média, um valor superior a 100% do valor da compra realizada sete meses depois. Destaque especial deve ser dado aos produtos Óxido Nitroso (que caiu de R$ 28,00 para R$ 9,00), Nitrogênio (que caiu de R$ 15,00 para R$ 3,00) e Argônio (que caiu de R$ 95,00 para R$ 9,00).
4 – Lesando o órgão máximo de inteligência do país
Em dezembro de 2001, o MPF ajuizou a Ação Civil Pública nº 2001.34.00.033944-5 para que fosse obtido o ressarcimento dos danos causados ao erário decorrentes de superfaturamento da White Martins contra o órgão máximo de inteligência do país – denominado, à época, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, e, atualmente, Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Na referida Ação, constata-se que a White Martins usou de uma certidão enganosa (certidão de exclusividade de comercialização de gases expedida pela Junta Comercial do Distrito Federal) para tornar inexigível a licitação. Constata-se, também, que, à mesma época e na mesma cidade, o órgão de inteligência pagava R$17,01 por um produto que o Hospital Universitário de Brasília pagava R$ 3,95.
É de se destacar um fato inusitado: em sua defesa, a White Martins tentou anular a Ação pelo fato de o processo interno que tornou inexigível a licitação ter “desaparecido”. Pasmem todos: “desaparecido” nas dependências do próprio órgão de inteligência. Tal argumento foi derrubado pelo MPF, que se manifestou da seguinte maneira: “Ao se entender que a cópia do processo administrativo de licitação se traduz em elemento indispensável à propositura de ação civil pública, quando há outros documentos, inclusive referentes a esse mesmo processo, aptos a demonstrarem a pretensão do autor, estar-se-ia prestigiando aqueles que, em decorrência de conduta desidiosa ou mesmo dolosa, subtraíram tal processo com o fim de se livrarem de qualquer questionamento quanto à ilicitude da licitação”.
No final, a White Martins foi condenada pela 13ª Vara Federal do Distrito Federal a devolver ao erário os valores cobrados a maior. A empresa, como era de se esperar, está recorrendo da sentença que a condenou.
5 - O escândalo dos Hospitais Federais do Rio de Janeiro
Tal escândalo veio à tona com a publicação (no jornal O Globo de 31 de maio de 1998) da matéria “Números da tunga da saúde no Rio”, de autoria do jornalista Elio Gaspari.
Para que se avalie a que ponto chegou a manipulação de preços, basta ler o que consta da citada matéria, a saber: “A administração do Hospital de Jacarepaguá informou ao sistema de contabilidade oficial que pagou R$1,75 por metro cúbico de Oxigênio Líquido. Quando esse mesmo oxigênio foi comprado pelo Hospital de Bonsucesso, ele informou que custou R$11. Numa mesma cidade, uma mesma mercadoria variou em 495%. Diferença de fornecedor? Não. A empresa White Martins fez as duas vendas”.
O caso teve grande exposição na mídia. O então Ministro da Saúde José Serra determinou o cancelamento dos diversos contratos que a White Martins mantinha com referidos hospitais.
Em decorrência do acontecido nos Hospitais Federais do Rio de Janeiro, foi instaurado o processo nº 99.0058085-0 contra a White Martins e quatorze administradores de tais hospitais – inclusive o acima citado dr. José Kogut, que havia acusado a White Martins de estar “matando pacientes com câncer”. Além desse processo de Responsabilidade Civil, foi instaurada, também, a Ação Civil Pública nº 990013674-8. Ambos os processos ainda estão tramitando na 29ª Vara Federal do Rio de Janeiro.
6 – Conclusão
Considerando que o apurado no processo de formação de cartel movido pela SDE comprova que a White Martins explora implacavelmente o consumidor brasileiro de um modo geral; considerando que entre os consumidores explorados encontram-se nossos miseráveis hospitais públicos; considerando que a White Martins chegou a cobrar do Exército Brasileiro um preço dez vezes maior que o preço que cobrou dez anos depois do INCA; considerando que a White Martins teve a audácia de lesar de forma desmoralizante o próprio órgão máximo de inteligência do país; considerando que administradores de recursos públicos dificultam acintosamente a obtenção de documentos que possam comprometer o órgão sob seu comando; considerando, por fim, que apurar “caso a caso” não teria o condão de inibir a White Martins – empresa que demonstrou o mais absoluto desprezo pelas autoridades de nosso país,
Lícito torna-se concluir que a única forma de resguardar o consumidor brasileiro é realizar uma rigorosa sindicância na empresa White Martins com o objetivo de analisar criteriosamente a manipulação de preços que tanto prejuízo traz aos cofres públicos e ao consumidor brasileiro de um modo geral.
A propósito, coloco-me à disposição para maiores informações a respeito de “manipulação de preços de gases medicinais e industriais”. Isso inclui a indicação de casos nos quais o dinheiro público, seguramente, está sendo desviado para os cofres da White Martins.
Desde já – na condição de autor da denúncia que levou o TCU a comprovar o superfaturamento de mais de seis milhões de reais contra o Exército Brasileiro, autor da denúncia que levou a Justiça Federal a condenar a White Martins por lesar a Abin, autor de denúncia ao Ministério da Saúde sobre descalabros no INCA, autor da denúncia que levou o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro a instaurar um inquérito civil no caso do HPM de Macaé e autor de denúncia de formação de cartel à SDE – afirmo que tenho motivos suficientes para apontar a Petrobras como o consumidor contra quem os superfaturamentos da White Martins devem ser prioritariamente investigados.
Finalizando, informo à 3ª Câmara – responsável pela Defesa do Consumidor na Procuradoria Geral da República – que, devido à importância dos fatos denunciados para a defesa do consumidor brasileiro, cópia desta será formalmente encaminhada às autoridades a seguir citadas: Presidente do Conselho de Administração da Petrobras Ministra Dilma Rousseff; Ministro da Justiça Tarso Genro; Ministro da Saúde José Gomes Temporão; Comandante do Exército Brasileiro General Enzo Martins Peri; Presidente do TCU Ministro Ubiratan Aguiar; Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Cláudio Soares Lopes; Secretária de Direito Econômico Mariana Tavares de Araújo; Presidente do CADE Arthur Badin; Diretor-Geral da Abin (a ser confirmado); Diretor-Geral do INCA Luiz Antônio Santini e Prefeito de Macaé Riverton Mussi.
João Vinhosa é engenheiro e professor
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