Avatar é o melhor filme do cinema.
É a tomada de consciência. É a grande
virada. É finalmente o nascimento
do homem como ele sempre deveria
ter sido. É o começo da História.
Avatar é também o capital querendo transformar a lua de Pandora num novo Haiti
Dedicado a Daniel Pagliusi, advogado que joga society comigo e me recomendou o filme (eu estava hesitante, mas a opinião dele, valiosa, foi decisiva). A Milton João Ferreira, meu contador e leitor assíduo, e que é sósia do avatar de Jake Sully, o protagonista de Avatar. E ainda a Ethevaldo Siqueira, que eu amo, mas continua cego, subserviente e deslumbrado com a voracidade do capital.
Avatar é disparado o melhor filme do cinema. Mais: está em primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto lugar entre os melhores. É a tomada de consciência e a decisiva autocrítica da humanidade. É a grande virada, é finalmente o nascimento, pela arte, do homem como ele sempre deveria ter sido. É o começo da verdadeira História. Não só a arte e o cinema dividem-se agora em antes e depois de Avatar, também a história humana não é mais antes e depois de Cristo: tudo passa a ser antes (aa) e depois de Avatar (da).
Deveriam baixar decreto universal tornando Avatar obrigatório, para ser visto pelo menos três vezes ao ano, com ingressos gratuitos subsidiados. Avatar já nasceu clássico, e não há exagero aqui, pelo contrário, estou sendo até comedido. Veja a seguir por que Avatar é mesmo tudo isso.
Deveriam baixar decreto universal tornando Avatar obrigatório, para ser visto pelo menos três vezes ao ano, com ingressos gratuitos subsidiados. Avatar já nasceu clássico, e não há exagero aqui, pelo contrário, estou sendo até comedido. Veja a seguir por que Avatar é mesmo tudo isso.
Primeiro, porque Avatar (roteiro e direção de James Cameron, o mesmo de Titanic) é a demonstração científica e a prova derradeira de que quem está pondo de fato a biodiversidade em risco e acabando com a vida na Terra é o capital. Fica bem claro que o verdadeiro algoz é o homem que aí está, regido pelo capital --- o homem-capital ---, daí Avatar ser o melhor e o mais completo estudo sobre a história contemporânea. Assistir apenas uma vez a Avatar vale mais do que cursar o primeiro grau, o colegial, a Faculdade e fazer doutorado. Tudo o que você mais precisa saber, para se transformar num ser humano autêntico e pleno, está no filme. O que faz de James Cameron mais um gênio do cinema, ao lado de Chaplin etc. A história do filme é simples e, em essência, a mesma da humanidade até aqui. Ano de 2154. Uma poderosa companhia terráquea quer explorar um minério precioso, o Unobtanium, na lua de Pandora, que orbita Alpha Centauri, a 4,4 anos luz da Terra. Obviamente, para extrair o minério, ela terá de invadir Pandora e fazer daquela lua mais uma de suas propriedades. E leva até ela uma equipe de soldados mercenários.
Qualquer coincidência com a sociedade de classes que temos hoje, de talhe capitalista, é mera semelhança. Acontece que Pandora é habitada por um povo muito simpático e doce, os Na’vi, que vivem não só perfeitamente integrados ao meio ambiente, como são parte orgânica e decisiva dessa harmonia. Uma vez que o capital ‘precisa’ devastar o meio ambiente de Pandora para extrair o Unobtanium, o conflito aflora e toma corpo. Nada diferente do que fez o capital na sua fase mercantil, quando invadiu e se apropriou de várias áreas do Planeta, dando ensejo à colonização extrativa de riquezas. E dizimou populações inteiras, como os índios nas Américas do Sul, Central e do Norte, no maior genocídio que a humanidade já conheceu, claramente aludido no filme.
Em Avatar, o capital precisa repetir isso, ou melhor, repetir o que fez, por exemplo, no Haiti: apropriar-se das riquezas de forma predatória e desordenada, para depois deixar as populações locais sem nada e na pobreza, residindo em habitações frágeis e incapazes de suportar tremores como o recente terremoto.
O que demonstra, tenho dito à exaustão, não existirem mais tragédias provocadas por desastres naturais, e que a varinha mágica do capital há mais de 200 anos é a grande responsável pela destruição delas decorrentes. Em suma, o capital precisa repetir, em Avatar, o que fez em quase todo o terceiro mundo: após as invasões e a extração predatória, ele terá de instituir em Pandora o Estado de Direito, a tal da democracia que temos hoje, a política, as leis, a polícia e as instituições que já conhecemos, para manter em seu poder as áreas ocupadas e ter o ‘legítimo’ direito de se apropriar de todas as riquezas locais. Mas os Na’vi se revoltam e, unidos, enfrentam o homem-capital de peito aberto. Não vou contar como o conflito se resolve, vá ver o filme.
E há outras razões que fazem de Avatar o melhor filme do cinema. Ao mostrar a rebelião dos Na’vi contra o homem-capital, em revolta bastante semelhante à dos escravos negros do Haiti liderados por Toussaint L’Ouverture há quase 200 anos, o filme se coloca em defesa da luta armada. O povo de Pandora se arma como pode para enfrentar o homem-capital-invasor, comprovando ser a luta armada o instrumento mais valioso de defesa e proteção da humanidade: já salvou a espécie humana um sem-número de vezes, diga-se.
Só a mente equivocada recusa-se a apoiar a luta armada, em nome do pacifismo abstrato. Sim, a luta armada é expediente para ser utilizado somente quando a causa é cientificamente justa e quando há possibilidade concreta de vitória. Exemplo: a contra a escravidão há cerca de 200 anos no Haiti. Era uma causa justa que exigiu o uso de armas. Outro exemplo: a revolta pela luta armada dos Na’vi na paradisíaca Pandora de Avatar. Nunca vi tão justa. No caso da luta armada no Brasil, nos anos 70, era justa também, mas ficou claro que se tratava de ação de altíssimo risco, com enorme possibilidade de fracasso. Logo, se mostrou inapropriada e inoportuna, um erro histórico, concorrendo apenas para sofisticar o aparato repressivo de então, além de ensejar a tortura nos porões da ditadura. Poucas ações são mais prejudiciais à humanidade do que a luta armada quando usada em hora errada.
Outra razão pela qual Avatar é o melhor filme da História está na desconstrução e na superação que ele faz da religião, tal qual preconizava John Lennon na canção Imagine. Em Pandora, não existe religião, no verdadeiro sentido da palavra. O vocábulo ‘religião’ vem do latim, religare, e significa religar o que já esteve unido. Esta é a concepção correta de religião, e não existe religião neste formato em Avatar. Os Na’vi estão unidos e em perfeita simbiose com a natureza, da qual fazem parte. Quando na sociedade primitiva ainda tribal a humanidade dividiu-se em classes (primeiro, como senhor e escravo, depois como senhor e servo ou patrão e empregado etc.), o homem desirmanou-se e se desagregou.
As tribos viram-se obrigadas a ocupar territórios vizinhos, a usurpar e a apropriar-se de tudo neles, para impedir que seu próprio território não fosse igualmente invadido, ou seja, para garantir a própria sobrevivência. Por essa razão, os conquistadores tiveram de se tornar classe dominante, no território invadido, e de se manter em conflito permanente com os habitantes das terras ocupadas, oprimindo-os para conservar as apropriações e coibir as rebeliões, exatamente como tenta fazer o capital na lua de Pandora, em Avatar.
Mais: nas sociedades tribais primitivas, foi preciso manter os territórios ocupados sob dominação (é assim até hoje), explorando sempre sua força de trabalho (primeiro na forma de escravos, depois como servos e finalmente como assalariados etc., até chegar aos nossos dias). Necessário era não sucumbir, o que levou a humanidade ao acirramento da luta de classes, então recém-instituída. Para tanto, as tribos conquistadoras tiveram de lançar mão da luta armada e criar instituições como o poder, a polícia, a política, as leis, que irão dar origem ao Estado de Direito e à democracia que temos hoje. Tudo para conservar o que havia sido usurpado. Assim, o conflito de classes, quase sempre latente, acabou resultando muitas vezes em grandes tragédias como as guerras mundiais, chegando a pôr em risco a vida no Planeta nos momentos em que houve ameaça de guerra nuclear.
Em resumo, as tribos conquistadoras do passado, no afã de se proteger das invasões, ocuparam os territórios que as ameaçavam, dando origem naquele momento à propriedade privada e à sociedade de classes. Como se vê, o direito de propriedade individual e privada, bem como a divisão de classes, equivalem ao direito de invasão e de usurpação, o que nos leva a entender que trabalhar para os outros nessas condições, mesmo que em troca de um bom salário, é dominação, violência e violação. A religião surgiu nesse exato momento e contexto em que tal divisão de classes emergiu na humanidade. Ela buscava religar o que havia sido desunido, ou seja, acabar com a divisão de classes. Mas a luta pelo religare, inicialmente autêntica e espontânea, acabou em muitos conflitos, uma vez que propugnava pelo fim das classes, o que nunca interessou aos conquistadores.
A História nos mostra que a luta de classes acabou desembocando também nessa miríade de religiões e seitas que temos hoje, todas elas anestesiante eficaz que só serve para fazer com que indivíduos conformem-se com a divisão de classes. Para que aceitem o que aí está, como se a vida fosse assim mesmo, não tem mais jeito, e a luta de classes fosse algo natural e inerente ao homem. Esses dias, um amigo de infância, Rui Werneck de Capistrano, de Curitiba, mandou-me texto de Sêneca para tentar provar, como ele mesmo diz, que o ser humano já nasceu ‘torto’ (carrega não só o bem, mas também o mal dentro de si). E que isto vem desde séculos, antes de Cristo e do capitalismo. Não sabe Rui (nem Sêneca) que essa idéia --- segundo a qual o homem sempre foi ‘torto’ --- já caiu por terra há tempo, derrubada que foi pela ciência autêntica (e mesmo pela não-autêntica, a oficial que aí está).
De fato, é correto dizer que o ser humano é ‘torto’ desde séculos, antes de Cristo e do capitalismo, mas é equivocado dizer que o homem é naturalmente ‘torto’ ou que é ‘torto’ desde que veio ao mundo. Isto já foi amplamente comprovado pelos pesquisadores e estudiosos da época das primeiras comunidades primitivas, como os aborígenes encontrados nas Américas após o Descobrimento (nenhum conhecia as classes). Sim, o homem sempre foi, como todos os animais, instintivamente preparado para enfrentar e se defender de predadores.
E sempre houve disputa pela fêmea etc., com agressões constantes. Mas o homem só se ‘entortou’, mesmo, no sentido de deixar de ser uma espécie solidária, quando se viu obrigado a dividir-se em classes e a um apropriar-se dos territórios, da força de trabalho e de tudo que era de outros, a fim de preservar seu espaço. Ou seja, o homem só se ‘entortou’ mesmo quando se tornou inimigo do próprio homem e um passou a explorar o outro, algo não-existente em nenhuma outra espécie (nem mesmo entre abelhas ou formigas, que têm suas operárias, mas isto é outra coisa).
Tão logo se formaram as classes, nos primórdios da humanidade, o homem viu-se obrigado a usar toda aquela sua agressividade instintiva e primária, de preservação, também contra os indivíduos da classe a que passou a se opor, e vice-versa. Era o homem usando seu instinto de preservação contra o próprio homem, surgindo daí o egoísmo exacerbado, e depois a exacerbação de outros traços instintivos, como o ciúme, a inveja etc. Portanto, ao contrário do que imaginava Sêneca, e muito mais como acreditava Jesus, o homem só passou “a ser torto”, no conceito de meu amigo Werneck, quando se dividiu em classes. Não foi à toa que, revoltado com a divisão de classes de sua época (em que os judeus eram escravos dos romanos), Jesus um dia gritou: “Somos todos irmãos!”
Na Pandora de Avatar, não há religião nesses termos (nos termos do religare), nem a necessidade dela, uma vez que não há o menor sinal de desunião entre os Na’vi nem de eles estarem divididos em classes. Não há classes em Pandora, pelo menos até a chegada do homem-capital, que tenta impor a divisão invadindo, ocupando, subordinando, oprimindo e apropriando-se de tudo. Na verdade, os Na’vi são ateus, embora acreditem em Deus. É que Deus, para eles, é a natureza, ou melhor, é a matéria em sintonia com tudo e da qual todos são parte. Deus, para os Na’vi, é essa energia que move os corpos e está presente na matéria. Se desrespeitada e abalada, é o todo que padece, é o equilíbrio ambiental e a vida presente em Pandora que ficam ameaçadas.
Os Na’vi até oram para esse seu deus-natureza, às vezes pedindo para que salve a vida de um irmão ferido. Mas se este acaba morrendo, ouvimos dos Na’vi algo mais ou menos assim: “Os ferimentos que sofreu foram tão graves que nosso deus, essa energia presente em todos os seres, objetos e lugares, e que nos mantém unidos e solidários, não teve forças para salvá-lo”. Enfim, em Pandora não há Deus ou, se há, ele é essa força bastante limitada e frágil que compõe a natureza, mantendo o meio ambiente em equilíbrio e precisando ser respeitada. Se desrespeitada, a vida de todas as espécies de Pandora estará ameaçada. Até a escolha do título Avatar aponta para isso. Avatar é o humano transformado laboratorialmente em Na’vi para se infiltrar e espionar o povo de Pandora, a fim de ajudar o homem-capital a ter êxito naquela sua missão.
No Google, veja o que encontrei: “Avatar é palavra originária do sânscrito, vem de Avatãra e quer dizer ‘aquele que descende de Deus’ ou a ‘encarnação’ de qualquer espírito que ocupe um corpo, representando assim uma manifestação divina na Terra.” Encontrei também que, no hinduísmo, “Avatar é a manifestação corporal de um ser imortal, que pode ser por vezes um ‘ser supremo’. Significa “descida” ao corpo, normalmente denotando encarnações de Vishnu, tais como Krishna, que muitos hinduístas reverenciam como divindade.” No filme, o avatar, criado para se infiltrar como espião, muda de lado e se torna esse “ser supremo”, “do bem”.
Porém, claro está, no filme de Cameron, que essa encarnação ou essa manifestação corporal de uma entidade (que pode até ser suprema) não vêm de algo misterioso nem místico, a quem devemos temer por ser onipotente ou por vir supostamente de uma inteligência superior. Os avatares são produtos científicos, não encarnações divinas. São o resultado de algo já conhecido, a natureza, manipulada pelo homem, a qual devemos sempre respeitar se quisermos preservar a vida que é essencial à lua de Pandora e também à Terra. A natureza é, sem dúvida, outro ser supremo, a ser amado incondicionalmente, mas não reverenciado dogmaticamente. Avatar, o filme, é também a superação da filosofia.
Em Pandora, a filosofia, tal qual a religião do religare, é igualmente desnecessária. A filosofia é a ciência das ciências. Visa a desvendar os enigmas mais íntimos e essenciais da matéria, em especial, da matéria orgânica, respondendo às três grandes perguntas: de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Em Pandora, esses enigmas estão todos desvendados, assim como a ciência autêntica já desvendou as dúvidas que dizem respeito à humanidade.
Os Na’vi sabem tudo a respeito de sua origem e da importância que cada objeto ou cada individualidade têm na preservação da unidade do todo e na sobrevivência de sua espécie. Os Na’vi não precisam conhecer mais nada de si mesmos nem de seu habitat, Pandora. Isto até o exato momento em que um novo desconhecido chega --- o homem-capital --- para invadir, ocupar e expropriar tudo, trazendo violência, violação e destruição. Nesse momento, os habitantes de Pandora descobrem que precisavam conhecer melhor a realidade, para poder fazer frente aos humanos invasores.
O novo filme de Cameron é também o melhor de todos os tempos porque é verdadeiro marco, novo divisor de águas na história da humanidade. Uma das mais importantes descobertas científicas de Marx, já comprovada pela ciência autêntica, está em que a divisão em classes nos trouxe, de um lado, avanço e progresso sem precedentes; mas, de outro, por ser marcada pela apropriação e roubo de força de trabalho (o fenômeno da mais-valia), nos manteve até aqui em permanente conflito (aquele tão execrado por Jesus), a ponto de ele (o conflito de classes) ter se tornado fonte de origem da a barbárie que aí está. Ou seja, das doenças, da criminalidade, da destruição ambiental e de toda a desgraça que hoje abala a humanidade.
Temos filmes que foram igualmente divisores de águas, como O Incrível Homem que Encolheu, de 1957, direção de Jack Arnold. Versa sobre os efeitos destrutivos da radioatividade, numa época em que o planeta começava a se ver ameaçado pelas guerras nucleares. Há outros como O Dia em Que a Terra Parou, de 1951, direção de Robert Wise, em que um extraterrestre chega à Terra numa nave espacial para, com diplomacia, pedir o fim da proliferação de armas nucleares, as quais estariam pondo em risco todo o equilíbrio interplanetário. Ou filmes como Spartacus, de Stanley Kubrick, e Titanic, do mesmo James Cameron, em que a luta de classes e seus efeitos nefastos são mostrados de forma direta e objetiva no cinema. E também ET e Contatos Imediatos do 3o Grau, de Steven Spielberg e que tinham igualmente essa força. Mas nenhum deles atingiu o grau de plenitude de Avatar.
Só encontrei um senão no filme: a facilidade que os dóceis Na’vi encontram para enfrentar os humanos, estes superdotados e em poder da mais alta tecnologia, com naves de última geração. Mas Cameron está perdoado, o deslize não compromete. Que bom Avatar já ter ganhado o Globo de Ouro, ser forte candidato ao Oscar de melhor filme e poder bater todos os recordes de bilheteria da história do cinema (caminha para ser também recordista de público, hoje com E o Vento Levou). Chegar a tais números é conquista não só do cinema e de Cameron, mas da humanidade, portanto, digna de homenagens em todo o mundo.
Sim, a vitória dos Na’vi, o povo da lua de Pandora, soa falsa no filme. Até porque ela acontece fácil demais, ao cair no clichê maniqueísta e reducionista hollywoodiano da luta entre o bem e o mal dos velhos faroestes em que os índios eram sempre vilões e, o branco colonizador, o heróizão. Só que isto também foi de propósito em Cameron. O uso do clichê da polarização bidimensional reducionista entre o bem e o mal, típica de Hollywood, não só é consciente em Cameron, mas é o que há de mais sensível, inteligente e consistente em Avatar. O cineasta inverte este clichê, ao colocar o homem-capital como vilão, inclusive dentro de um transformer, justamente para desconstruir o próprio clichê e superá-lo, e com sutil ironia (coisa que Quentin Tarantino tentou mas não conseguiu fazer, por exemplo, em seu filme Bastardos Inglórios, em que o resultado acabou sendo pífio e grosseiro).
A história de Avatar, sem dúvida a mais consciente do cinema, nos obriga a ver que o vilão tradicional pode ser na verdade, muitas vezes, o verdadeiro herói e que o herói tradicional pode ser perfeitamente o verdadeiro vilão. Isto com nítido propósito de nos levar a crer que rebeliões por causas justas nunca são ingênuas nem inconsistentes, muito menos utópicas, e que podem perfeitamente ser vitoriosas, uma vez que estão sempre do lado da razão. Avatar é além de tudo a tecnologia --- inclusive, a de 3D --- a serviço da arte e do cinema, o que dá mais força e brilho ao filme, numa experiência única e sem precedentes no cinema. No filme de Cameron, a tecnologia é elemento decisivo do conteúdo.
Além de tudo, Avatar é corajoso. É preciso muita coragem para, em plena ocupação do Iraque e diante da possibilidade de o Irã ter a bomba atômica, fazer com que as mulheres Na’vi de Pandora também entoem uma variação daquele canto típico das mulheres árabes, o zaghareet (em árabe) ou called, salguta ou sarguta (assim chamado pelos iranianos). Trata-se de grito de guerra que teve origem no Egito e hoje expressa muito mais alegria por algo de bom que aconteceu (e que geralmente é ruim para o homem-capital do Ocidente).
Também exige forte dose de coragem fazer com que o homem-capital, o grande vilão de Avatar, chame de terroristas os hominídios avatares que se infiltraram na comunidade Na’vi para ajudar a combatê-la, mas acabaram aderindo à causa de Pandora. É difícil acreditar que toda essa autocrítica tenha partido de Hollywood, a grande Meca do capital criada com o único propósito de defender, fortalecer e proteger a vida capitalista. O novo filme de Cameron é a prova de que o cinema feito nos Estados Unidos continua sendo o melhor e o mais poderoso, justamente por ser o mais crítico de sua realidade. Não tenho vergonha de dizer que chorei do começo ao fim.
É uma pena que o governo chinês tenha desprezado o filme, que ficou apenas alguns dias em cartaz na China, para dar lugar a uma superprodução local sobre Confúcio. Mais de um bilhão de chineses deixaram de ver, cerca de 1/6 da população do Planeta. Mas, não adianta. A História é implacável com esses fenômenos. Avatar já é uma espécie de bíblia, mais cedo ou mais tarde vai ser conhecido de todos no Planeta, como a Lua, Pelé, o Haiti etc. A jornalista norte-americana Lori Pottinger foi muito infeliz em sua coluna no renomado site The Huffington Post, ao estabelecer paralelo entre o que ocorre em Pandora e na Amazônia, incriminando o governo Lula pela devastação ambiental a que estamos assistindo.
Sim, a Amazônia está desaparecendo, mas a devastação no governo Lula foi inferior a de recentes governos anteriores. Paralelo mais pertinente teria sido entre Pandora e os colonizadores que chegaram à América, destruíram as grandes reservas florestais, usurparam territórios indígenas, dizimaram suas populações, deterioraram o meio ambiente, ajudaram a poluir o Planeta e depois instituíram o Estado de Direito e a democracia para sacramentar, aos invasores europeus, o direito de propriedade.
Toda essa opressão e essa subserviência, nos mesmos moldes da mostrada na Pandora de Avatar, levou a ciência autêntica a constatar que, enquanto prevalecer a divisão de classes, os homens permanecerão na pré-história. Uns voltando-se contra outros, todos egoístas e possessivos, garantindo de um lado opulência a alguns (progresso) e, de outro, fome e miséria para bilhões (retrocesso e atraso). Só ingressaremos na verdadeira História quando, em vez de fazer uma história meramente em si, como é hoje, o homem passar a fazer uma história consciente e para si, em que ele determina tudo de comum acordo com a natureza. Evidentemente, sem nunca desrespeitá-la ou pôr em risco seu equilíbrio e a harmonia, ainda que conflitiva, que supostamente sempre existiu entre ambos. Assim, ao nos brindar com essa forma racional de vida, dona de toda essa liberdade para traçar seus próprios desígnios e sem os conflitos de interesses perpetrados pelas classes, Avatar marca o começo da verdadeira história humana.
Nos últimos 45 anos, sempre tive em conta que 8 e ½, de Federico Fellini, era o que havia de melhor no cinema e Spartacus, de Kubrick, a melhor superprodução. Avatar acaba de tomar o lugar deles. Coincidentemente, 8 e ½ de Fellini nos brinda com um conceito de arte que é perfeito, cientificamente correto e definitivo. Inclusive, é o dado que mais concorreu para que eu o considerasse o melhor filme do cinema até Avatar.
É o mesmo conceito de arte posto por Picasso e que é a ‘fórmula’ da ‘boa-arte’: “A verdadeira obra de arte é uma mentira que nos faz ver uma verdade”. Fellini apenas acrescenta em 8 e ½: “Portanto, se você não tem o que dizer, não faça arte.” E eu acrescento: “A arte é o grito de dor ou de júbilo experimentado pelo homem. São as emoções mais fortes que ele experimentou em vida, geralmente antecipando-se aos seus semelhantes.
Daí precisar partilhá-las com todos (pondo-as para fora na forma de obra de arte), de tal maneira que o público assimile a mesma experiência e saiba como se sair bem dela, se um dia a experimentar também.” Avatar é justamente isso: uma mentira (na medida em que é uma história de ficção criada pelo homem --- no caso, por Cameron) que nos faz ver todas essas verdades aqui apontadas, despertando a consciência até mesmo de consagrados intelectuais (meu amigo Werneck entre eles, embora ainda não seja famoso nem esteja consagrado, o que é uma questão de tempo --- basta que adquira esta consciência para dar o salto definitivo).
Importante é entender que conscientizar não significa ‘impor’ uma idéia ao espectador, mas plantar nele a semente da verdade, que poderá germinar ou não. Isto sabendo de antemão que, se a semente germinar, ainda vai levar anos e anos de boca a boca, contando com a força de outras obras de arte, para que haja verdadeira e duradoura tomada de consciência. Portanto, Avatar pode ser só o começo da tomada de consciência, daí eu dizer também que pode ser o começo da verdadeira História. A consciência se põe em um, depois chega a outro e, ao longo dos séculos, vai se disseminando, custando muito a chegar a toda a humanidade.
Só um alienado acha que consciência só é verdadeira quando todos os habitantes do Planeta a alcançam de forma definitiva. Quem são os primeiros a tomar consciência em Avatar? São os próprios avatares infiltrados. Eles aderem à causa dos Na’vi tão logo percebem a irracionalidade daquela invasão predatória do homem-capital. É exatamente o que ocorre na obra-prima de Eisenstein, O Encouraçado Potemkin (1925), quando os marinheiros da Armada Imperial Russa rebelam-se no encouraçado, aderindo à revolução. Isto também é consciente em Cameron e chega a ser citação, sugerindo-nos uma revisão do filme russo.
Pandora, a lua habitada pelos Na’vi, simboliza a sociedade sem classes antagônicas para a qual o homem precisa caminhar, tirando proveito dos avanços e de todas as conquistas tecnológicas até lá alcançadas, e que a sociedade de classes nos propiciou. Avatar é a caminhada em direção ao futuro queimando etapas e antecipando dias promissores, como tanto deveríamos fazer. O Planeta está enfermo, nos lembrava Michael Jackson, e se nada for feito para conter essa voracidade do homem-capital que vemos em Avatar, a vida essencial ao equilíbrio e à harmonia em todos os sentidos vai acabar.
Em especial, a vida racional, cujo sentido maior é o de entender o Universo, para podermos dar altos voos em direção à imortalidade da espécie, a tudo. A humanidade não pode jogar fora essa oportunidade. Por isso, não só a arte e o cinema se dividem agora em antes e depois de Avatar, mas também a história humana não se dá mais antes nem depois de Cristo, mas sim antes (aa) e depois (da) de Avatar
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