Acordo de rivais
Da Revista Digital
O primeiro fim de semana de março chega a Mendoza, no oeste da Argentina, com uma festa popular que marca tradicionalmente o início da colheita das uvas. Elege-se a rainha dos vinhedos - desta vez uma loira de olhos verdes com sobrenome alemão e 1,73 metro de altura - e uma multidão lota o anfiteatro encravado nas montanhas que precedem os Andes. No sábado à noite, 27 mil pessoas fazem uma contagem regressiva e erguem seus copos de plástico cheios de vinho tinto, distribuído pelo governo, para confratenizar no maior brinde do mundo, conforme anuncia o locutor oficial.
Há muito mesmo o que comemorar. Em um país conhecido pela improvisação e pela falta de diálogo, a indústria vitivinícola argentina constitui um exemplo de como o planejamento de longo prazo e a parceria entre governo e empresas, aliados a uma indiscutível vantagem comparativa, são capazes de mudar a cara de um setor da economia.
Duas décadas atrás, a Argentina exportava US$ 15 milhões em vinho e tinha menos de 1% do mercado mundial. O consumo doméstico era alto, uma herança dos costumes trazidos por imigrantes espanhóis e italianos, mas baseava-se em garrafões do estilo Sangue de Boi. Havia uma crise de preços, com políticas governamentais que visavam expandir o cultivo de uvas a zonas áridas para gerar empregos, sem nenhuma consideração por seus efeitos colaterais, como a implantação de vinhedos de baixa qualidade e o excesso de oferta.
O panorama hoje é completamente diferente. As exportações de vinho engarrafado chegam a US$ 650 milhões e representam 3,9% do mercado mundial. O faturamento da indústria alcança US$ 2 bilhões e ela emprega 350 mil pessoas. Investimentos estrangeiros e de grupos locais modernizaram o sistema de produção. Graças à promoção comercial, o charme da uva malbec ficou associado à Argentina mundo afora.
O consumo interno hoje é de 26 litros por habitante ao ano, menos da metade do que no fim dos anos 80, mas se sofisticou e os vinhos finos conquistaram espaço. "Se isso fosse uma corrida de Fórmula 1, eu diria que estamos ganhando um segundo por volta", compara Sergio Villanueva, diretor da União Vitivinícola Argentina (UVA). No ano passado, ultrapassamos o Chile e nos tornamos os maiores fornecedores dos Estados Unidos.
O que gerou toda essa transformação? A desvalorização do peso, em janeiro de 2002, tornou os ativos locais mais baratos e ajudou a atrair mais investimentos estrangeiros. Também reforçou a competitividade dos vinhos no mercado externo, ao baratear o preço em dólar. Mas a indústria vinícola começou sua mudança quase dez anos antes.
Em 1994, as duas maiores províncias produtoras, Mendoza e San Juan, fizeram um acordo para regular a produção de uvas e evitar a superoferta. O governo nacional, que à época defendia a abertura da economia, abriu as portas do país para as importações. Barricas e tonéis da França e dos Estados Unidos chegaram às vinícolas. Telas de granizo e irrigação por gotejamento, antes pouco vistas nas plantações de uvas, tornaram-se comuns. Por causa da paridade um por um entre o peso e o dólar, foi possível pagar enólogos reconhecidos, como o italiano Alberto Antonini, para prestar consultoria.
Por um lado, o excesso de produção foi controlado. Dos 320 mil hectares de área plantada em 1990, restaram 70% atualmente. Houve um processo de concentração no cultivo. Hoje temos 1,2 mil hectares de produção própria e 300 fornecedores exclusivos, o que garante a qualidade das uvas, diz Mayra Maioli, gerente de relações públicas da Bodega Trapiche, uma das mais tradicionais da Argentina, com 125 anos de história.
A queda do consumo doméstico - fenômeno relacionado à diversificação da oferta de bebidas e ao prolongamento da jornada de trabalho nos centros urbanos - obrigou as vinícolas a pensar seriamente nas exportações, mas a inexistência de uma marca país jogava contra a abertura de mercados. Foi aí que apareceu a Wines of Argentina, uma inédita tentativa de coordenação entre os produtores, e dos produtores com o governo.
A entidade reúne mais de 200 adegas, que se juntam para divulgar seus vinhos no exterior, com o apoio de instituições como o Ministério das Relações Exteriores, a Fundação Exportar e o governo da Província de Mendoza. Para 2011, estão previstas cerca de 300 ações comerciais, em mais de 40 países - do Brasil ao Reino Unido, dos países nórdicos à Ásia. A divisão de tarefas é considerada essencial. Diferentemente do Chile, onde as exportações estão concentradas em três vinícolas e só a Concha y Toro detém 50% das vendas, a Argentina tem uma dispersão enorme de atores - já são mais de 400 adegas exportadoras.
"Protagonizamos uma experiência pioneira e, ainda hoje, única na Argentina. No mercado doméstico, éramos competidores. Mas no mercado externo não éramos nada, o que gerou um grande espírito de grupo", explica o diretor-geral da Wines of Argentina, Mario Giordano.
A promoção comercial era um dos pilares do Plano Estratégico 2020, que voltou a reunir produtores e governo, na virada do século. Um dos objetivos definidos foi alcançar 10% do mercado internacional em 20 anos. O Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA), equivalente à Embrapa na Argentina, entrou com sua parte. Desde então, trabalha com as vinícolas para desenvolver técnicas de cultivo.
Os investimentos estrangeiros, antes e depois da desvalorização do peso, começaram a abundar. Hoje o setor ainda é dominado por argentinos, mas tem franceses (Flecha de los Andes), chilenos (Trivento e Finca La Celia), portugueses (Finca Flichman) e austríacos (Norton).
Além da compra de vinícolas, houve investimentos que começaram do zero. É o caso da família Reich, do Chile, que adquiriu 35 hectares então inexplorados, para a implantação de vinhedos, nas imediações de Mendoza em 2002. "As instalações foram completamente novas. Com a crise argentina, pagamos um quarto do que gastaríamos hoje", afirma Patricio Reich. Nove anos depois, a Bodega Renacer fatura US$ 4 milhões e exporta 85% de sua produção de vinhos finos a 30 países. São aproximadamente 100 mil caixas (com 12 garrafas de 750ml cada), das quais o mercado brasileiro absorve 8%.
As vinícolas ainda estão longe de um ambiente de negócios perfeito. Há imposto de 5% às exportações - devolvido pelo governo, sem juros, dois anos depois - e a ausência de financiamentos baratos e de longo prazo complicam novos investimentos sem capital próprio. Faltam acordos de livre comércio que possibilitem vendas ao exterior sem a incidência de tarifas, como o Chile tem com os Estados e a União Europeia.
Até no Brasil, apesar do Mercosul, os vinhos chilenos estão entrando mais facilmente do que os argentinos, pondera Reich. Diante das frequentes rusgas no comércio bilateral, os vinhos argentinos já sofreram a aplicação de licenças não automáticas no Brasil, como represália a barreiras semelhantes adotadas contra produtos brasileiros na Argentina. Mesmo com essas dificuldades, no entanto, sente-se prosperidade em Mendoza: o mundo, incluindo os apreciadores brasileiros de vinho, parece ter se rendido à cor púrpura do malbec.
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