Por João Vinhosa*
Encontra-se tramitando no CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – o Processo Administrativo n°. 08012.009888/2003-70, no qual cinco empresas produtoras de oxigênio são acusadas de formar o chamado “Cartel do Oxigênio”.
Como se sabe, os processos de formação de cartel tramitam primeiramente na Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE), que autua, intima, recebe defesa e, ao final, propõe ao CADE a penalidade ou a absolvição dos envolvidos. O CADE, então, julga o processo, aceitando, ou não, a proposta da SDE.
Acontece que tal cartel pratica crimes da maior gravidade, como, por exemplo, superfaturamento contra hospitais públicos. É de se ressaltar que, pelo mesmo tipo de crime, os “vampiros da saúde” e os “sanguessugas” – que, juntos, causaram danos ao erário infinitamente menores que o “Cartel do Oxigênio” – passaram a ser tratados como os mais abomináveis espoliadores dos recursos da saúde nacional.
Além disso, este é um processo tumultuado. As empresas acusadas têm usado todas as brechas legais para procrastinar seu julgamento. Cinco mandados de segurança já foram interpostos para suspender o processo e até a constitucionalidade da Lei que determina a competência do CADE julgar tais processos foi questionada.
Note-se que o “Cartel do Oxigênio” é velho conhecido. Na matéria “Vice-diretor culpa cartel por superfaturamento” (O Globo, 10/07/99), o Dr. Kogut, então vice-diretor do Hospital do Câncer, declarou: “Sem dúvida que fomos vítima desse cartel. Na época em que denunciamos os preços exorbitantes, teve um representante da empresa que veio ao nosso gabinete. Eu disse que aquele não era papel de um homem decente. Que ele estava matando pacientes com câncer”.
A mais evidente constatação da atuação deste cartel ocorreu no Hospital Central do Exército (HCE). Em cinco licitações anuais consecutivas, de 1995 a 1999, uma única empresa apresentou proposta de preços. Ela chegou a cobrar pelo oxigênio o extorsivo valor de R$ 7,80. Em 2000, quando outras empresas participaram da licitação, ela propôs o valor de R$ 1,63 e, ainda assim, foi derrotada. Lícito torna-se inferir que, ao propor preços tão elevados nos anos anteriores, a empresa tinha a certeza que seus “concorrentes” não participariam das disputas.
A propósito, o TCU comprovou o superfaturamento contra o HCE, e determinou a devolução ao erário de R$ 6. 618. 085, 28, valor equivalente a cerca de uma centena de ambulâncias superfaturadas no escândalo dos sanguessugas.
Denunciado à SDE em novembro de 2003, o caso do HCE não prosperou porque foi atropelado por uma denúncia mais abrangente de formação de cartel envolvendo as mesmas empresas, conforme relatado a seguir.
Comprovação da formação de cartel
Conforme se sabe, a formação de cartel é um crime que, apesar de deixar pistas evidentes, é de comprovação extremamente difícil.
Até mesmo o ocorrido no HCE não é considerado prova formal da atuação do cartel. Apesar de uma única empresa ter “concorrido” sozinha nas cinco licitações (enquanto, na mesma cidade, uma outra fornecia para a Aeronáutica e uma terceira fornecia para a Marinha) não existe prova que essa “coincidência” é uma ação combinada de concorrentes com o objetivo de fraudar as respectivas licitações.
A comprovação da atuação do “Cartel do Oxigênio” só foi possível em decorrência da rara seqüência de fatos a seguir enumerados: 1 – a SDE recebeu, em dezembro de 2003, uma denúncia anônima com o nome dos funcionários que representavam as empresas nas negociações; 2 – devido à consistência da denúncia, a Justiça autorizou a quebra do sigilo telefônico dos representantes das empresas; 3 – as gravações telefônicas possibilitaram a obtenção de indícios suficientes para determinar uma operação de busca e apreensão; 4 – a operação de busca e apreensão, realizada em fevereiro de 2004, foi repleta de êxito. Nela, foi apreendido até mesmo o “estatuto do cartel” – conjunto de regras da associação criminosa.
Dentre as regras contidas no “estatuto do cartel”, destacam-se a forma de se dividir o mercado, a sistemática da cobertura em licitações públicas, os procedimentos para eliminar do mercado concorrentes “indesejáveis” e, até mesmo, a maneira de se punir os integrantes que transgredirem as normas de conduta do cartel.
Deve ser ressaltado que uma das regras do cartel é especialmente perversa: a proibição da venda do oxigênio às PSAs (empresas que produzem oxigênio nos próprios hospitais que o consomem). Com essa proibição, o cartel mata a alternativa que está sendo usada com sucesso por diversos hospitais para diminuir os gastos com o oxigênio. A proibição de venda de oxigênio às PSAs mata a alternativa porque essas empresas não podem funcionar sem a existência do produto em estoque para garantir o suprimento do hospital em suas paradas de manutenção.
Andamento do processo na SDE
Baseada nas provas coletadas, no início de 2003, a SDE instaurou o processo em questão. Tal processo tramitou cerca de cinco anos na SDE, sujeito a todos os tipos de manobras procrastinatórias por parte das envolvidas.
Em maio de 2008, a SDE encerrou sua participação, encaminhando o processo ao CADE, com a proposta de aplicação de pena máxima às acusadas.
Em seu Despacho, a SDE esclareceu que a pena máxima foi proposta tendo em vista a gravidade da conduta praticada, a essencialidade dos produtos fornecidos pelas acusadas e a falta de colaboração das acusadas com as investigações.
O relatório final da SDE, contendo 74 folhas, encontra-se disponível no endereço HTTP://www.cade.gov.br/temp/D_D000000362861115.pdf.
Andamento do processo no CADE
Recebido no CADE, o processo foi encaminhado à Procuradoria do órgão para que fossem analisados os aspectos legais dos questionamentos das acusadas.
Entre tais questionamentos, destacam-se: incompetência do Ministério Público Estadual e da Justiça Estadual de São Paulo para a investigação; falta de indícios para a abertura da averiguação preliminar; cerceamento de defesa; ilegalidade da interceptação telefônica e nulidade da operação de busca e apreensão. Conforme esperado, todos os questionamentos feitos pelos envolvidos foram, um a um, categoricamente pulverizados pela Procuradoria do CADE, como pode ser visto no endereço HTTP://www.cade.gov.br/temp/D_D000000413871525.pdf .
Em abril de 2009, o processo, já com 20 volumes, foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), onde se encontra. Após o parecer do MPF, o Conselheiro Relator fará seu voto e o submeterá ao julgamento do Plenário do CADE.
Considerações finais
Pelo acima relatado, depreende-se que – caso sejam penalizadas pelo CADE – as empresas acusadas provocarão uma desgastante briga jurídica com o objetivo de anular o julgamento do Processo Administrativo em questão.
É impossível negar: mais uma vez, o país se encontra diante da dobradinha de procedimentos que o tornou o país da impunidade. Por um lado, os acusados usam das diversas brechas legais para permanecerem impunes e, por outro lado, nossas autoridades abrem mão das armas que dispõem para evitar tal prática.
No caso, a mais poderosa arma desprezada por nossas autoridades é a troca de informações com autoridades de outros países. Por certo, se o Brasil passasse informações a outros países sobre tal cartel, dois efeitos seriam imediatos. Primeiro: as autoridades estrangeiras, por reciprocidade, nos informariam o que sabem a respeito do cartel. Segundo: as matrizes das multinacionais envolvidas – temerosas de serem investigadas em outros países por culpa de seus braços brasileiros – certamente, ordenariam a moderação da rapinagem contra o consumidor nacional.
Mais: o procedimento de nossas autoridades, negando informações às autoridades norte-americanas sobre os detalhes do processo contra o “Cartel do Oxigênio”, é irracional, inadmissível e até mesmo suspeito. Principalmente, sabendo que vigora um acordo de cooperação firmado pelo Brasil com os Estados Unidos para combater cartéis. Tal acordo, cuja razão de ser é exatamente a troca de informações entre as autoridades de defesa da concorrência das duas partes, pode ser visto no endereço HTTP://www.cade.gov.br/internacional/acordo_brasil_estados_unidos.pdf .
Mais ainda: é altamente discutível a interpretação segundo a qual – pelos termos do acordo acima citado – o Brasil só se comprometeu a passar informações sobre investigações aqui realizadas contra determinado cartel se, “dentro de tais investigações”, forem coletados indícios da atuação desse cartel nos EUA.
Conclusão
Mesmo se for julgado correto que o Brasil “não está obrigado a informar”, é injustificável nossas autoridades estarem agindo como se o Brasil “estivesse obrigado a não informar” dados sobre o “modus operandi” do “Cartel do Oxigênio”.
*João Vinhosa é engenheiro
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