A superficialidade de Daniel Piza em sua abordagem sobre Avatar
Dedicado ao articulista Antônio Gonçalves Filho, pelos textos cada vez melhores publicados no Estadão, como os dois últimos sobre Diderot, de domingo (31/1/2004).
Em recente texto enviado a todos, eu disse que três abordagens de renomados articulistas brasileiros haviam me chocado pela superficialidade e pseudociência. Hoje, vou me ater apenas a uma delas, a avaliação de Daniel Piza, do Estadão, sobre o filme Avatar, publicada em sua coluna Sinopse do suplemento Cultura, página D3, de 24/1/2010. “Superficialidade 3D” é o título de seu artigo. Piza qualificou o filme de superficial, lembrando que o diretor e roteirista James Cameron acabou fazendo uso de todos aqueles recursos, como o 3D, “a serviço de uma visão de mundo ingênua e inconsistente” e que isto teria deixado no articulista “um gosto frustrante”...
Os outros dois textos superficiais são de autoria de Delfim Netto, publicado em sua coluna Sextante, edição 508 de Carta Capital, e de Diogo Mainardi, na Veja, edição 2148, intitulado “Obama, Dilma e Tia Clélia”. Hoje, abordarei apenas a superficialidade do artigo de Daniel Piza.
Nos textos de Piza, a superficialidade sempre grita. Chega até a ser constrangedora. Por exemplo, ele diz nesse seu artigo no Estadão que, em Avatar, o diretor e roteirista James Cameron apostou suas fichas numa “visão de mundo ingênua e inconsistente”, o que o teria deixado frustrado. Piza refere-se à reação dos humanóides Na’vis, habitantes da lua de Pandora, onde se passa o filme, os quais conseguem derrotar o homem regido pelo capital (que eu chamo de homem-capital) e superar, com flechas e similares, a avançada e avassaladora tecnologia que ele (o homem-capital) criou e desenvolveu para invadir, ocupar e usurpar, das naves espaciais aos transformers.
Por ingenuidade ou desconhecimento, Piza não sacou que, em Avatar, Cameron não se coloca em defesa de nenhuma visão de mundo. Ele apenas retrata, habilmente com sua câmera, o que aconteceu e tem acontecido de concreto na realidade que aí está, para usá-lo como ponto de partida de sua história. O que foi fazer o capital (isto é, o homem-capital) na lua de Pandora, onde se passa a história de Avatar, não é nada diferente das aventuras vividas pelo mesmo homem-capital durante as invasões e ocupações ocorridas na fase mercantil e colonial do capitalismo. Não se trata, portanto, de visão de mundo, mas de retrato fiel como ponto de partida.
Quem estudou história e a colonização sabe que, naquele período, os europeus invadiram e se apropriaram de diversas áreas do Planeta, na América e na África, e mesmo na Ásia, para ali explorar as riquezas, no mais das vezes de forma predatória, dando ensejo à via capitalista de extração colonial. É exatamente isso que o capital (o homem-capital) tenta repetir na lua de Pandora, cenário de Avatar: invadir e ocupar para explorar um precioso minério, o Unobtanium.
Durante a colonização, populações inteiras foram dizimadas, como os índios nas Américas do Sul, Central e do Norte, no maior genocídio que a humanidade já conheceu, com o aval e o empenho da Igreja Católica, o que é subliminarmente aludido no filme. É o que deseja fazer também o capital (o homem-capital) na Pandora de Avatar. Portanto, reitero, não se trata de visão de mundo, mas sim da realidade nua e crua, a mesma que um dia acabou trazendo os ascendentes de Piza ao Brasil, possibilitando que ele se tornasse esse jornalista superficial e equivocado que é.
E a superficialidade de Piza não para por aí. Mesmo que Avatar defendesse essa visão de mundo apontada pelo articulista, ela não seria “ingênua” nem “inconsistente”. Conter o capital no seu ímpeto e voracidade, impedindo-o de acabar de vez com a vida na Terra, não é tarefa ingênua nem inconsistente, muito menos utópica. É imperativo neste momento histórico da humanidade em que a vida no Planeta está por um fio, dada a devastação ambiental causada pela ação irracional do capital, no seu processo de acumulação. Ninguém está falando aqui em socialismo ou comunismo, mas em dar um jeito nisso antes que seja tarde, como já alertava e pedia Michael Jackson.
Ademais, ações contra o capital já foram vitoriosas muitas vezes, exatamente como em Avatar, e não seria ingênuo e muito menos superficial lutar por isso para salvar o Planeta, o oposto do que entende Piza. Por falta de estudo, o articulista não sabe que o capitalismo, na sua fase heróica, quando trouxe progresso e salvou a humanidade, também foi tomado pelos Piza da vida da época por “visão de mundo ingênua e inconsistente”. No entanto, o capitalismo vingou e se tornou dominante, não era ingênuo nem inconsistente vislumbrar na época que isto viesse a acontecer.
Piza também diz que “Avatar comete o equívoco de ter um enredo convencional embalado como se fosse inovador.” E acrescenta: “Uma obra de arte não vale apenas pelas posições que toma, mas pela maneira como seduz o espectador até elas”. O crítico não percebeu que Cameron lança mão, de propósito, de um enredo convencional, justamente para desconstruir uma história mais convencional ainda --- essa clichê de o capital invadir, usurpar e se apropriar de tudo, pela via da luta armada e fazendo uso da violência, para depois se fazer passar pelo herói da história.
Qualquer criança alienada e viciada em PlayStation sonha estar dentro de um transformer como os de Avatar, condicionada que foi a sair por aí derrotando os vilões que o homem regido pelo capital (o homem-capital) soube tão bem construir ao longo dos anos, de Che Guevara a Bin Laden. Cameron inverte o clichê e justamente vilaniza esse homem-capital, colocando-o dentro do transformer. O efeito desmitificador e desmistificador disso é imediato. O ‘homem-capital-transformer’ é derrotado por aqueles que ele tanto deseja escravizar, tal qual aconteceu na rebelião dos escravos negros há cerca de 200 anos no Haiti, a primeira do gênero vitoriosa na História.
Sim, a vitória dos Na’vis, o povo da lua de Pandora, soa falsa no filme. Até porque ela acontece fácil demais, ao cair no clichê maniqueísta hollywoodiano da luta entre o bem e o mal dos velhos faroestes em que índios eram sempre vilões e, o branco colonizador, o herói, tem razão Piza. “Não sobrou muito tempo para pensar em contar uma história menos esquemática, menos... bidimensional”, comenta o jornalista. Só que isto foi de propósito em Cameron.
Eis outro traço da superficialidade de Piza, considerar histórias como a de Avatar esquemáticas e bidimensionais. Esquemática e bidimensional é a realidade que aí está, assentada na divisão de classes, a qual o articulista tanto preza e defende. É a sociabilidade que temos hoje e que mentes superficiais como a de Piza a tomam equivocadamente como eterna, natural e da condição humana, e inclusive complexa demais para ser entendida. Isto é ser ingênuo e inconsistente.
Acontece que usar mais esse clichê --- a polarização bidimensional reducionista entre o bem e o mal, típica de Hollywood --- é não só consciente em Cameron, mas o que há de mais sensível, inteligente e consistente em Avatar. O cineasta inverte o clichê justamente para desconstruí-lo e superá-lo, e com sutil ironia (coisa que Quentin Tarantino tentou mas não soube fazer, por exemplo, em Bastardos Inglórios, e o resultado acabou sendo pífio e grosseiro).
A história de Avatar, sem dúvida a mais consciente do cinema, se obriga a nos esclarecer que o vilão tradicional pode ser na verdade, muitas vezes, o verdadeiro herói e que o herói pode ser perfeitamente o verdadeiro vilão. Isto com nítido propósito de nos levar a crer que rebeliões por causas justas nunca são ingênuas nem inconsistentes, como quer Piza, e podem ser muitas vezes vitoriosas, uma vez que a razão está sempre do lado delas.
E Piza prossegue dizendo que a crítica à tecnologia, segundo ele presente em Avatar, “soa estranha num produto que não seria nada sem as invenções da informática e dos satélites”. E acrescenta que, é verdade, “os efeitos especiais não são detalhes, como parecem para alguns, mas tampouco são o parâmetro final.”
Piza também erra feio aqui, ao achar que Avatar opõe-se à tecnologia e faz uso de efeitos especiais como “parâmetro final”. Avatar apenas se opõe à maneira como o homem regido pelo capital (o homem-capital) faz uso da tecnologia que criou para destruir o meio ambiente e a vida na lua de Pandora. Parece óbvio, no filme, que após a vitória sobre o homem-capital, os Na’vis não jogariam no lixo todas aquelas conquistas tecnológicas levadas à Pandora, mas sim as incorporariam e as aproveitariam para fazer frente a novos e futuros desafios. Há tudo, menos ingenuidade e inconsistência nos humanóides de Avatar (nos avatares) e muito menos nos habitantes de Pandora. Inclusive, aqui está uma sugestão a Cameron para Avatar II.
Outro equívoco de Piza está em afirmar que Avatar “trata da arrogância humana, em especial, da arrogância de exercer controle sobre a natureza.” Não, o filme não trata disso porque essa arrogância não é do homem, mas sim do homem-regido-pelo-capital, do homem-capital. Ao contrário, a vida humana é a maior vítima dessa arrogância, nunca a sua causadora. É muito raso e superficial Piza achar que a devastação ambiental, hoje a maior ameaça à vida no Planeta, seja provocada pelo homem e não pelo homem-capital.
Por fim, nesse seu artigo, Piza recomenda ao diretor e autor do roteiro, James Cameron, que se aprofunde na semiótica, por ser “um dos assuntos mais quentes da atualidade”. No entender de Piza, a semiótica teria supostamente o poder ontológico de determinar e explicar a realidade humana. Ou seja, de nos levar a enxergar “como os humanos fizeram e fazem a linguagem e os signos e como a linguagem e os signos fizeram e fazem os humanos”, possibilitando-nos entender melhor a realidade, feed back que estaria faltando ao cineasta de Avatar.
Também não chegou ainda ao conhecimento de Piza que a semiótica já caiu por terra há muito tempo, demolida que foi pela ciência autêntica, por se tratar de pseudociência e falsa consciência. Nem de que ela só é “assunto do momento” na cabeça de cientistas e jornalistas chinfrins. Sugiro que Piza leia esses autores, para superar a alienação braba que o acomete e não mais recomendar pseudociência e falsa consciência a ninguém. A principal função do jornalista é informar, não desinformar. Desinformar é criminoso.
Tom Capri.
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