‘Potencialismo’ é reação ao
maior drama da humanidade,
a coisificação, de que somos todos
vítimas e que tanto tem deixado o
mundo infeliz. Será que vai vingar?
Gustavo, de 17 anos --- ambos vítimas do mesmo drama
e hoje naquela fase terrível de ter de escolher a
profissão certa ---, andam me irritando.
Dedicado a Chris Mello e a Sonia Racy, que
vêm dando vida nova ao colunismo social.
Muita gente já ouviu falar do potencialismo ou Movimento Potencialista. Sabe que se trata de nova tendência comportamental. O que a maioria desconhece é que estamos diante de mais um movimento de demolição da realidade instituída, isto é, de reação à vida regida pelo capital que aí está nos estressando, nos apequenando e nos reduzindo a nada todos os dias. Mais do que isto, é protesto espontâneo --- ainda não se sabe se vigoroso ou não (isto é, se vai pegar) --- contra o maior drama da humanidade até aqui, e que mais nos tem derrubado: a coisificação, que é a transformação do homem em coisa, em número, em mero objeto inferior a um robô e sujeito a todos os tipos de manipulações. Falo desse indivíduo vazio e alienado, um ninguém, um “nada” no que todos nós nos transformamos, mesmo os que ficaram ricos ou famosos. Em suma, o potencialismo é o embrião --- que pode até ser impotente e morrer logo, não importa --- da revolta da humanidade contra esse estado de coisas que aí está, que é a verdadeira causa de nossa infelicidade e é também responsável por todos os nossos males, das doenças, às guerras e à fome. Pois bem, a melhor coisa que li este ano sobre potencialismo, na mídia, foi na coluna Em Cena, de Chris Mello, do Estadão, daí ter dedicado a ela e à colunista Sonia Racy este artigo, na verdade um ensaio. Entenda a questão. O texto é longo, mas importante e vale a pena.
Um dos mais atentos e argutos jornalismos feitos hoje no País está no colunismo social. Sempre nos reserva gratas surpresas, como esta de Chris Mello. Outro dia, Sonia Racy, na sua coluna Direto da Fonte, também do Estadão, furou o Brasil inteiro, inclusive seu próprio jornal, ao revelar que Ronaldo Fenômeno havia feito lipoaspiração. Já na sua página Em Cena de 11 de março último, a colunista Chris Mello chamou atenção para o potencialismo, “novo lifestyle, total tendência”, como ela escreveu.
Sem grandes pretensões, enquanto toda a mídia ainda se esmerava em provar que Lula é o presidente mais corrupto da história do País, Chris chamava atenção --- nessa sua sensível abordagem --- para o maior drama da humanidade: a coisificação e a desestruturação do ser humano a partir da anulação de todos os seus potenciais pela vida moderna, esta regida pelo capital que vem reduzindo o homem a um zero à esquerda e da qual ele tenta há séculos se libertar, só que agora pela via do potencialismo. Não sei se este movimento vai vingar, mas já é no mínimo uma boa notícia.
O que temos hoje, por força da vida regida pelo capital, é o homem reduzido a coisa, ou melhor, a objeto especializado que tem força de trabalho roubada diariamente (fenômeno da mais-valia) e que, na sua maioria, é obrigado a exercer uma única atividade todos os dias (no máximo, duas ou três), ainda por cima monótona e rotineira. Enfim, o homem tem sido obrigado a viver uma vida muito chata, e não há como se livrar dela, no presente momento, a não ser lançando-se nas drogas ou aventurando-se em rebeliões, duas saídas que, já sabemos, não levam a nada.
Quem disse que o homem nasceu para suportar tal carga pelo resto da vida? Definitivamente, não fomos feitos para isso, mas sim para desenvolver todas as nossas potencialidades. A humanidade deu seus primeiros passos já tendo de fazer de tudo, ou de tudo um pouco, desde “esportes” radicais como caçar, pescar, escalar montanhas, atravessar precipícios, até correr quilômetros ou cruzar oceanos, para achar alimento. O mote da vida nunca deixou de ser garantir a sobrevivência da espécie. E a luta sempre foi árdua.
Um ser humano assim tão segmentado quanto somos hoje não pode ser feliz nem consegue satisfazer-se com tão pouco. O potencialismo é uma revolta contra isso. Diz Chris Mello que, no potencialismo, “as pessoas não constroem mais sua existência em torno de uma só carreira. O caminho é detectar múltiplas aptidões e explorá-las. Pense num publicitário-gourmet-esportista.” Em suma, o potencialismo reflete a angústia desse homem moderno apequenado e reduzido a nada. Chris Mello continua, citando Ivonne Fluchaire, VP de mercadotécnica e publicidade da Amex: “Potencialistas não estão preocupados em melhorar unicamente seu status social. São pessoas em busca de crescimento e satisfação pessoais.”
Fomos educados, desde os primórdios da humanidade, a nos desenvolvermos intelectualmente por força (exigência, mesmo) das múltiplas atividades que sempre tivemos de exercer. Isto é, sempre fomos condicionados, modelados e direcionados, desde que nos tornamos humanos, para o homem total, aquele que precisa fazer de tudo um pouco para poder dar conta dessa árdua tarefa que é garantir a sobrevivência da espécie. Atuando assim, dando vazão e desenvolvendo todas as suas potencialidades, o homem aprende de tudo um pouco e cresce espiritualmente assim a cada dia de seu trabalho.
Só dessa maneira, multiativo e multifacetado, e sem ter força de trabalho roubada, o homem consegue ser feliz. Portanto, não há como ser feliz na sociabilidade que temos hoje, em que, além de termos força de trabalho roubada todos os dias, fomos reduzidos a um ser especializado que só faz uma coisa, e rotineiramente, cumprindo horários, às vezes preso a um escritório ou dentro de um táxi, entre tantas outras profissões-prisão que estão por aí. Ou seja, hoje trabalhamos sempre alheios e distantes da natureza, no exercício de atividades sem graça, repetitivas e por vezes irritantes. Quer aventura mais radical e fascinante do que ter de caçar todos os dias no meio da selva movido pela mera necessidade de saciar a fome? Por isso, não conseguimos mais ser felizes: não há mais sentido no nosso trabalho, uma vez que ele é para outro, nem o nosso trabalho nos permite mais desenvolvermos todas as nossas potencialidades, mesmo quando somos donos do negócio.
O homem moderno, seja de onde for, é infeliz e não está satisfeito. Quem pode ser feliz se tem força de trabalho usurpada todos os dias e se o jogaram numa rotina insalubre? Mesmo que não tenha consciência de que é assim oprimido, o homem percebe que algo está errado. Tanto que, quando chega sexta-feira, ele faz festa porque pode sumir do trabalho e descansar. Durante a semana, ele não pode chegar atrasado ao trabalho nem tem direito de consumir diretamente nada do que produz, como fazia primitivamente, nos tempos em que matava a caça a pau e depois se valia dela para saciar a fome. Quer chatice maior?
Hoje, o homem que produz 5 mil paralamas por mês com a ajuda das máquinas, além de enlouquecer aos poucos nesta atividade e adquirir tudo quanto é tipo de doença ao longo dos anos, só vai poder comprar o automóvel que ajudou a fabricar no dia em que juntar dinheiro para isso ou puder pagar as ‘intermináveis’ prestações. Isto quando consegue. A maioria passa a vida sem poder adquirir o que ajudou a produzir. Hoje, o homem não pode se apropriar daquilo que seu trabalho produziu. Além disso, recebe em troca apenas salário, que é truque, pois nunca é remuneração adequada e correta.
O ser humano sempre soube fazer de tudo um pouco na vida. Nas sociedades primitivas, ainda tribais de milênios atrás, cada indivíduo já estava preparado para exercer um sem-número de atividades, pois as exigências sempre foram infinitas, o potencial humano também. Para poder sobreviver, o homem sempre se viu obrigado a desenvolver suas potencialidades, ou seja, a aprender a fazer de tudo: caçar, pescar, colher frutos, carregar peso, correr, ser músico, esportista, escalar montanhas, não havia uma única atividade que o indivíduo não conseguisse desenvolver, das que lhe eram exigidas.
Todas eram, ao mesmo tempo, físicas e intelectuais, não havia separação entre trabalho físico e trabalho intelectual. Quando o homem ia à caça para se alimentar, atividade eminentemente física, este seu trabalho era também criativo e enriquecedor, portanto intelectual: ao mesmo tempo em que o indivíduo tentava abater a caça, ia podendo inventar seus instrumentos de trabalho, como o machado, o arco, a flecha etc. O homem tinha, portanto, total liberdade para dar vazão a todos os seus potenciais, no trabalho de então. Além de garantir a sobrevivência da espécie, aquela forma de trabalho enriquecia espiritualmente o homem, ao lhe possibilitar novas descobertas todos os dias. Já no trabalho para outro, como o de nossos dias, isto não foi mais possível: o homem não teve mais como se enriquecer espiritualmente, uma vez que passou a exercer rotineiramente uma mesma atividade, em que não tinha como inventar nada. O que você pode criar num trabalho que lhe obriga a rosquear 30 porcas por minuto, durante oito horas?
Vale repetir, não havia separação entre trabalho físico e intelectual. Esta divisão só veio a ocorrer depois, quando a humanidade se dividiu em classes, isto é, quando o homem deixou de trabalhar para si mesmo e passou a trabalhar para os outros, não importa se em troca de proteção, teto e alimento, como escravo; se em troca de uma pequena parte de sua própria colheita, como servo; ou se em troca de salário, como temos nos dias de hoje. A esta nova forma, demos o nome de trabalho abstrato ou trabalho alienado.
Com o aparecimento das classes, o homem foi forçado a especializar-se, pois a partir daí foram surgindo as profissões, decorrentes da divisão social do trabalho. E assim o trabalho deixou de ser criativo e enriquecedor. O homem viu-se impedido de desenvolver todas as suas potencialidades, na medida em que passou a ter de exercer uma única atividade, todos os dias, como pintar paredes, escrever livros, pilotar avião, ser executivo, empregada doméstica, músico etc. Isto aconteceu quando da divisão em classes porque, a partir dela, o ser humano foi afastado de suas condições naturais de sobrevivência --- isto é, da natureza ---, para ter de despender trabalho abstrato para outros, os quais passaram a tirar proveito dessa expropriação de força de trabalho e até a enriquecer com ela. Aquele trabalho que era vivo e enriquecedor do passado, e que levava o homem às alturas, enriquecendo-o mentalmente, virou essa coisa chata que tão bem conhecemos e que tanto nos estressa e nos leva a dar pulos de alegria quando chega o descanso do fim de semana.
Vale decorar isto: o trabalho que tínhamos antes das sociedades de classes era o criativo da satisfação de nossas necessidades. Já o trabalho que temos hoje é o nada criativo da insatisfação em todos os sentidos, até porque nenhum salário – que, repito, é sempre truque – satisfaz plenamente.
E mais: o trabalho anterior às classes educava o homem e o realizava. Com a divisão em classes, em que se afirmou a prática da apropriação de trabalho abstrato, a nova forma de trabalho (essa que perdura até hoje) passou a deseducar e a definhar a espécie. Tanto que o homem foi então obrigado a inventar a educação (essa que temos hoje, transmitida pelos nossos pais e ensinada nas escolas) para poder continuar sabendo das coisas. Foi também levado a criar a atividade esportiva, pois vinha definhando fisicamente após o aparecimento das classes, correndo o risco de até mesmo desaparecer como espécie.
Você não encontra roubo de força de trabalho em nenhuma outra espécie viva. É verdade, em qualquer espécie de primata, temos o macho dominante, a disputa pela fêmea e tudo o mais. Mas nunca vemos um exemplar da espécie obrigando os demais de seu grupo a trabalhar para ele, enquanto lhes dá em troca algo como um pouco de água de coco, frutas da estação ou peixes frescos que o próprio macaco-trabalhador colheu ou pescou para este seu agora “dono”, “senhor” ou “patrão”.
Só o ser humano é capaz de tal proeza, e isto porque --- vale repetir --- a humanidade cindiu-se em duas classes básicas: de um lado, os que submetem outros ao trabalho, para se apropriar de seus resultados, lucrando com isso; e, de outro lado, os que são submetidos a esse tipo de trabalho e destinam sua produção ao seu “dono”, “senhor” ou “patrão”. Não se iluda, as duas classes saíram perdendo com essa divisão.
Aquele que passou a expropriar trabalho de outros se afastou da natureza e sossegou num canto, de onde se limitou a administrar o roubo de força de trabalho com o qual pode manter de pé sua atividade, independentemente de ter ou não consciência de que estava roubando trabalho. É óbvio que, distante assim das condições naturais de trabalho, sem despender muita energia e apenas gerenciando, ele passou a se degradar e a definhar fisicamente, como engordar etc. Além disso, também deixou de se enriquecer espiritualmente como ocorria quando de seu trabalho criativo, aquele que lhe permitia fazer sempre novas descobertas todos os dias.
Já aquele que se submeteu à violência que é trabalhar para outro teve de se especializar em uma ou outra atividade, o que também o afastou de todas essas possibilidades de realização que sua relação direta com a natureza lhe oferecia, impedindo que desenvolvesse suas potencialidades.
A divisão em classes foi, assim, uma conquista e ao mesmo tempo uma derrota da humanidade. Uma conquista porque, num certo sentido, ela foi essencial ao homem, pois nos garantiu todos esses avanços tecnológicos e de possibilidades materiais, sem os quais muito provavelmente a espécie humana não teria sobrevivido. Mas foi também uma derrota porque, por outro lado, nos trouxe toda essa degradação e destruição que aí estão, e chegou a hora de fazer alguma coisa, antes que a vida acabe no Planeta.
Assim, a divisão em classes foi para nós a primeira grande guerra mundial, porque pôs o homem globalmente em estado de submissão e de conflito contra si mesmo, levando essa prática do roubo de trabalho a todos os cantos do Planeta. Esta primeira grande guerra, a que chamo de guerra-mãe, veio a ser a fonte de origem de todos os males que passaram a abalar e ainda abalam a humanidade, como genocídios, doenças, as duas grandes guerras mundiais e todas as formas de destruição provocadas por acidentes e desastres naturais.
Não acredita? Não é o grande terremoto que causa mortes, é a impossibilidade que têm o capital de garantir às classes oprimidas --- essas que são vítimas do roubo de força de trabalho todos os dias --- edificações sólidas e em condições para suportar acidentes naturais de qualquer porte. Foi o que vimos recentemente no Haiti, mas não nas mesmas proporções, por exemplo, no Chile. Esta guerra-mãe a que me refiro é que gerou todas as outras, desde as menores e mais localizadas até as mundiais, como a Primeira e a Segunda. Ela foi responsável também pela maior ameaça que paira hoje sobre nós: a guerra nuclear. Decore isto: todas as nossas desgraças vêm da guerra-mãe, inexoravelmente.
O drama todo se resume no seguinte: quem foi reduzido a mero número e só entende de uma coisa, não entende de nada, nem mesmo profundamente daquilo em que se especializou, como é muito comum vermos na sociedade de classes de talhe capitalista que aí está. O homem especializado nunca entende profundamente nem mesmo daquilo em que se especializou porque sua especialização faz parte de uma totalidade complexa, que a explica, a define e a justifica. Ao se especializar, o homem perdeu a capacidade de alcançar e compreender inteiramente essa totalidade em que sua especialidade está inserida.
O médico especializado em cardiologia, por exemplo, não pode entender profundamente nem mesmo de sua especialização porque o coração é parte de um todo mais complexo que o explica, o define e o faz funcionar, e que ele não alcança. Especializado, o cardiologista nunca consegue dominar a complexidade dessa totalidade em que o coração se insere e que explica e justifica todo o seu funcionamento. Daí deixar, frequentemente, de detectar a verdadeira raiz de um problema cardíaco, especialmente quando a origem deste problema se encontra fora do coração, nessa totalidade que já se perdeu para ele e lhe escapou. Por exemplo, se a origem desse mesmo problema cardíaco está na sociabilidade (advém, suponhamos, do estresse que a vida moderna provoca), ele, o especialista, não conseguirá chegar à verdadeira causa do problema, a não ser que faça milagres ou seja dotado de um sexto sentido.
Em suma, toda aquela força de trabalho que o homem despendia em proveito próprio, para garantir a sobrevivência sua e dos seus, na sociedade primitiva, passou a ser despendida para outros e em proveito de outros, com horários e rotinas a cumprir. Naquele momento da humanidade, o ser humano, que antes era um “faz-tudo”, especializou-se e ficou pequeno, ou melhor, se fragmentou: virou só médico, só dentista, só motorneiro de bonde, só cineasta, só ascensorista, só entregador de pizza, quando não só prostituta ou passador de droga. Enfim, virou essa ‘coisa’ mentalmente pobre e alienada que aí está.
De vez em quando, você vê um médico poeta ou um executivo que também é motorista de táxi e músico formado em medicina, mas não exerce a profissão. Isto é raridade. O habitual é o homem especializado, que deriva da divisão social do trabalho, que por sua vez deriva da divisão de classes. A especialização nos ilude, levando-nos a acreditar que crescemos espiritualmente com ela, mas que na verdade apenas nos apequena e apouca.
Hoje, há até fragmentos de especialização, como a especialização em algumas especializações. Por exemplo, o cancerologista especializado só em câncer da face ou só da tireóide etc. Fomos reduzidos a robôs que “cumprem” ordens, ou melhor, a zilhões de átomos inconscientes do que é o todo e do que são as partes, obrigados a ter força de trabalho roubada em escala para que outros possam tirar proveito disto e se locupletar. A especialização que derivou da divisão social do trabalho é a grande prova de que a sociedade de classes apoucou, apequenou e reduziu o homem a quase nada. Já vimos que antes, na sociedade primitiva e tribal, não havia famosos, porque todos eram importantes na comunidade e para a comunidade, ou seja, todos eram conhecidos de todos, portanto, eram ‘famosos’. Hoje, há famosos, mas ninguém mais tem importância, a não ser para o capital.
Quando alguém é importante para o capital, por ser, por exemplo, portador de força de trabalho valiosa, como um músico de sucesso etc., este trabalhador tem do mesmo jeito força de trabalho roubada como outro qualquer. A diferença está em que ele é melhor compensado financeiramente e agraciado com a fama, mas nunca na medida certa nem o suficiente para que possa garantir a própria felicidade, pois o capital fica sempre com a maior parte e nunca deixa de ser devedor no que tange aos anseios da alma e do espírito, ou seja, à felicidade verdadeira.
Assim é que essa sociedade de “especialistas” que temos hoje produz, todos os dias, o ser anônimo, a maioria silenciosa que aí está, o homem invisível ou o não-homem que você vê todos os dias, mas não enxerga, e que é essencial e decisivo à vida capitalista. Sem esse homem abobalhado e especializado, não há capitalismo. Na sua invisibilidade e anonimato, ele abastece diariamente a vida capitalista ao ter força de trabalho roubada.
Veja como o não-homem foi muito bem definido e caracterizado no grito do poeta belenense José Pedro Soares: “Há um outro homem enterrado em mim! Submerso, adormecido, anos e anos, eras e eras, num monstruoso exílio de solidão, turvo, vivendo uma grande mentira, um blefe...”. (Extraído do poema “Momento Oportuno”, do livro Finjo que Sou um Poeta, Editora Nativa, 2001).
Dessa maneira, toda profissão é um recorte, uma segmentação e uma fragmentação empobrecedores, um apequenamento do homem, que se vê diminuído e humilhado diante de seus semelhantes. Mais do que isso, é a sórdida coisificação do ser humano ou o que os cientistas sociais chamam de atomização ou reificação, que significa o homem ter sido reduzido a coisa, a átomo, a objeto manipulável e sugado pelo próprio homem. Como você pode ver, toda profissão --- no capitalismo --- é filha da violência e da violação em que se constitui o roubo de trabalho em escala no qual se assenta a vida regida pelo capital.
Portanto, é um equívoco acreditar que o trabalho moderno e as profissões dignificam o homem e que toda profissão é honrada. Qualquer profissão, por mais fascinante e menos enfadonha que seja, é violação e violência contra o indivíduo, e faz dele, sem exceção, burro de carga, escravo moderno. As profissões não seriam isto se não obrigassem o indivíduo a se especializar, pois o ser humano é, no seu íntimo e na sua origem, omnilateral (oposto de unilateral), ou seja, foi preparado pela sua própria história e pelas próprias tradições a fazer de tudo ou de tudo um pouco, é bom repetir.
Por isso, carece de significado a comemoração do Dia do Trabalho. É o mesmo que comemorar o Dia do Escravo, acaba de me lembrar com muita propriedade Adélia, minha mulher, que neste momento está aqui ao meu lado. Dar um feriado ao escravo, para que possa comemorar, é tentar convencê-lo de que o trabalho escravo dignifica o homem e de que é uma honra ser um escravo como ele. O mesmo ocorre com o trabalhador, que não passa, já vimos, de um escravo moderno de muitas derrotas e poucas vitórias, engessado e sufocado que sempre foi pelas inumeráveis profissões que apareceram e ainda surgirão.
Render homenagem ao trabalhador com o feriado de 1o de Maio é o mesmo que lhe dizer: “Olhe, é honroso ser violentado todos os dias, ter trabalho não pago usurpado e ainda por cima não poder usufruir dos resultados do próprio trabalho. Portanto, aí está o seu dia, faça bom proveito, comemore.”.
Assim, não faz sentido considerar honrosa nenhuma profissão. Reitero, nenhuma profissão é digna, e o são menos ainda aquelas que não exigem nenhum esforço intelectual, só físico, como carregar sacos na zona portuária etc. Um lixeiro tem de se envergonhar, sim, de sua profissão. O grande ator que ama o que faz, idem. Por mais que seja celebridade e já tenha chegado ao auge da fama, e se contente com isto, o astro também foi reduzido pela sociedade em que vive a máquina que faz a mesma coisa todos os dias para proveito do capitalista, por mais ricas, diversificadas, divertidas e saborosas e que sejam as personagens que encarna ou por mais que se encante com sua profissão.
Aí vêm os cientistas sociais, que se consideram atualizados, para nos dizer que devemos todos conduzir nossas vidas no sentido de fazer aquilo que queremos e gostamos. Ou seja, que devemos seguir o que ditam e determinam nossos dons. Informam-nos de que já foi descoberto o “gene do talento” e que os seres humanos nascem predispostos geneticamente para as profissões, como carregar dormente em estrada de ferro, conduzir burro de carga nas encostas das montanhas ou ser prostituta no Alaska.
Começa que qualquer herança genética é sempre forjada na realidade objetiva (sociabilidade), na história pregressa de nossos antepassados, o que inclui necessariamente toda a humanidade. Além do mais, é raro encontrar um indivíduo que tenha liberdade para escolher a profissão de seu gosto e poder exercê-la sem nenhum impedimento, como se estivesse realizando um velho sonho. Eu não conheço, na minha família não existe. Eu mesmo nunca escolhi nenhuma de minhas profissões, e tenho muitas.
É verdade, existe essa coisa de o indivíduo nascer com talento para exercer uma determinada atividade profissional, como músico, médico etc. Mas, hoje, todos os ofícios são “imposição” social – principalmente, dessa sociedade que aí está, regida pelo capital –, mesmo que a predisposição para uma determinada atividade esteja presente naturalmente no DNA do indivíduo, como herança genética. Nenhuma mulher nasce com talento, por exemplo, para ser prostituta ou na adolescência sonha ser uma. Poderá, depois, vir – por razões sociais – a sonhar com a profissão ou até a gostar dela, mas isto é outra coisa.
Da mesma forma, nenhum homem nasce com talento para ser lixeiro ou sonha a vida inteira em ser lixeiro. Mais: ninguém se realiza como lixeiro. Enfim, todas as profissões deveriam envergonhar, mesmo aquelas que buscamos persistentemente, iludidos de que será a realização de um grande sonho. Hoje, toda profissão é violência e violação. O indivíduo trabalha onde dá, seja expropriando mais-valia, como patrão, seja tendo sua mais-valia expropriada, como empregado. A realidade não lhe oferece muita escolha, isto quando há emprego e salário em dia.
Por esses motivos todos, ando irritado com minha filha Cheyenne e com seu namorado, Gustavo, ambos com 17 anos. Eles cursam o último ano do Colegial e estão na idade de escolher “a profissão dos sonhos”, aquilo que mais gostariam de fazer na vida. Examinam os talentos e dons que carregam e ainda procuram pela profissão certa. Tenho tentado explicar que tudo isso não passa de falso problema, mas os dois encontram dificuldades para entender. Estão mais inclinados a optar por aquilo de que mais gostam e pelo que sentem ser mais fácil fazer. E não é por aí.
Se você é jovem e está à procura de uma carreira para perseguir como os dois, tenha sempre em mente o seguinte: toda profissão, no capitalismo, é indigna, por mais que você goste e tenha os maiores dons para ela. Não há nenhuma atividade, no mundo atual, em que não haja força de trabalho roubada e você não seja obrigado a se fragmentar e a se apoucar como ser humano, especializando-se em algo que terá de exercer necessariamente de forma rotineira, caindo na mesmice que leva às doenças e à miséria mental. Fuja disso. Procure se preparar no maior número possível de atividades, principalmente nas em que você sente ter menos talento e nenhuma aptidão.
Há saída? Não, não há, pelo menos no capitalismo. As três possibilidades que você tem hoje, sob o capital – ser patrão, empregado ou desempregado – nunca trazem a plenitude e não garantem a felicidade, pelo contrário, só apequenam, apoucam e reduzem o ser humano a essa máquina de produzir capital e garantir a acumulação. Esse tipo de vida só é um pouco mais interessante para o capitalista, e ainda assim quando ele é bem-sucedido, ou seja, quando tem maior amplitude de acesso aos bens de consumo. Mas nem assim o homem se realiza plenamente e encontra necessariamente a felicidade.
Como não há outro caminho, a sugestão que deixo – e tenho dado insistentemente à minha filha Cheyenne e a seu namorado – é para que procurem se especializar naquela profissão que ao mesmo tempo garanta o leitinho das futuras crianças (meus netos) e que seja também a em que eles não tenham muita aptidão. Agindo assim, terão ao menos aprendido a exercer direito mais uma entre as atividades aí disponíveis e que a sociabilidade lhes negou, ao tolher as potencialidades de cada um.
Repito para deixar bem frisado: o potencialismo pode não vingar e vir a se mostrar impotente, mas na pior das hipóteses é uma reação contra tudo isso que aí está, o que já representa alguma coisa.
Tom Capri
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