Herança maldita: a culpa é da serpente ou da maçã?
Autor: Gil Castello Branco
Há quem diga que a expressão “herança maldita” foi cunhada no Éden. Quando Adão foi flagrado consumindo a maçã proibida, disse: “Não fui eu, foi a mulher que Tu me deste”. Eva, por sua vez, acusou a serpente. Apesar do jogo de empurra, ambos foram expulsos do paraíso. A partir daí, segundo a crença, os homens e as mulheres herdaram o pecado original.
Na política, a expressão tornou-se conhecida quando Lula passou a utilizá-la atribuindo aos governos anteriores tudo o que supostamente encontrou de errado ao assumir a Presidência da República. Na prática, uma forma de desconstruir as administrações anteriores, justificando as imperfeições da própria gestão.
Exageros à parte, temos novas perspectivas. O Brasil adquiriu presença internacional, subiu no ranking das maiores economias mundiais e expandiu consideravelmente o mercado interno por meio da inclusão social e ampliação da classe média.
Na realidade, essas conquistas foram obtidas em cenário internacional favorável e com a colaboração de vários governos, inclusive dos ditos “ruins”. Até de onde pouco se esperava, veio algo de bom. Sarney, por exemplo, realizou a transição democrática, criou a Secretaria do Tesouro Nacional e o Siafi – Sistema Integrado de Administração Financeira, em que são lançadas, desde 1987, as receitas e despesas da administração federal. Collor, com todos os males, promoveu a abertura comercial e reduziu, à época, o tamanho do Estado. Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso criaram o real, a Lei de Responsabilidade Fiscal e domaram a inflação.
No momento da atual sucessão, há que perguntar: que legado Lula deixa para Dilma? Com certeza, até por lealdade, a presidente só vai comentar os fatos positivos. Mas, na verdade, são inúmeras as dificuldades e os desafios que ela enfrentará nos próximos anos.
Estima-se que a economia brasileira tenha crescido 7,5% no ano passado, o melhor resultado dos últimos 24 anos. Em contrapartida, o deficit em conta-corrente do balanço de pagamentos acumulado nos últimos 12 meses já se aproxima de US$ 50 bilhões, o que equivale a 2,5% do Produto Interno Bruto. Nada assustador de imediato, visto que as reservas cambiais superam os US$ 250 bilhões.
No entanto, no ritmo em que avança, o deficit corrente poderá dobrar em dois anos se as medidas fiscais e monetárias não corrigirem o desalinhamento do real. Tendo em vista a chamada guerra cambial internacional e a supervalorização da nossa moeda, corremos o risco de acabar no Guiness Book pela quantidade de empregos que estamos gerando na China e em outros países dos quais importamos.
Com a inflação em alta, o governo Dilma sujeita-se a não conseguir baixar os juros básicos (Selic) a 2% ao ano em termos reais (descontada a inflação), como prometeu a candidata durante a campanha eleitoral. Neste primeiro mês, então, nem pensar. As apostas do mercado estimam alta de meio ponto percentual na primeira reunião da nova administração do Banco Central.
Sob o ponto de vista orçamentário, a equipe econômica herda restos a pagar de aproximadamente R$ 137 bilhões. São valores que estavam comprometidos nos orçamentos dos anos anteriores e não foram pagos nos respectivos exercícios. Como a arrecadação é finita, os gestores terão de optar entre pagar as despesas roladas dos anos Lula ou às previstas no orçamento de 2011.
Mas, enquanto buscará o equilíbrio econômico, o governo terá que realizar grandes investimentos em infraestrutura para evitar vexame internacional por ocasião da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. A primeira versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deve ser concluída e a segunda precisa começar. No caso dos aeroportos, por exemplo, faltando dois meses para o fim do ano passado, a Infraero havia investido apenas 22% do montante previsto no Orçamento.
A missão da presidente inclui ainda a modernização institucional, necessária tanto à democracia quanto ao sistema produtivo. As reformas política, tributária e trabalhista, itens fundamentais dessa pauta, não saíram do papel durante os oito anos do presidente Lula.
Como se vê, há muito pela frente devido ao que não foi feito no governo passado, fato natural em um processo histórico. Porém, considerando a relação política da presidente com o seu antecessor, a herança, quando maldita, possivelmente não será mencionada. Nesse paraíso, a eventual culpa não será de Adão, Eva, Lula ou Dilma. Vai acabar sobrando para a serpente ou para a maçã…
Fonte: Correio Brasiliense, 11/01/2011
NR.: As matérias assinadas não refletem necessariamente a opinião do blogger, sendo publicadas para estimular o debate.
Nenhum comentário:
Postar um comentário