João Vinhosa *
Com o objetivo de inibir a corrupção de agentes públicos – mola propulsora da maioria dos atos lesivos ao erário – no inicio de 2006, foi criada a Secretaria de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas (SPCI). Tal Secretaria é parte integrante da Controladoria Geral da União (CGU), órgão responsável por fiscalizar e detectar fraudes relativas ao uso do dinheiro público federal, ligado diretamente à Presidência da República.
Diante da constatação da indiferença das autoridades com um detalhado dossiê contendo explícitas denúncias de corrupção em caso altamente lesivo ao interesse público, e convencido que a atuação da SPCI no caso poderá evitar incomensuráveis danos ao erário, em 06 de outubro de 2009, o autor da presente matéria encaminhou ao Secretário de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas, Marcelo Stopanovski Ribeiro, correspondência cuja íntegra se encontra transcrita a seguir.
Indiscutivelmente, uma situação na qual se faz necessária a atuação da SPCI – que, como o próprio nome indica, age por antecipação no sentido de evitar a ocorrência de corrupção – é a situação que foi criada pela Petrobras, ao se associar à White Martins para a produção e comercialização de gás natural liquefeito (GNL).
Não se alegue que, em tal caso, a corrupção já produziu seus danos, e, por isso, está fora da área de atuação da SPCI, cujos mecanismos são preventivos. Essa alegação não pode ser acolhida, porque a forma como foi constituída a sociedade (denominada GEMINI) tornou-a um fértil campo para a corrupção continuada.
A denúncia de corrupção na constituição da GEMINI foi feita pelo próprio sindicato dos trabalhadores na indústria de petróleo (Sindipetro). Na verdade, é impossível haver denúncia mais categórica de corrupção que as charges que emolduram as matérias publicadas no jornal do Sindipetro sobre o assunto. Uma das charges, por exemplo, mostra uma pessoa com uma mala de dinheiro na qual se lê o nome White Martins; outra charge mostra dinheiro jorrando de um cilindro de gás acionado por Tio Sam (o texto explica que o grupo norte-americano Praxair Inc. é o proprietário da totalidade das quotas da White Martins). É de se destacar, também, o esclarecedor título de uma outra matéria:”Soberania Nacional Ameaçada – Mercado de GNL brasileiro está nas mãos de multinacional – Acordo firmado entre Petrobras e White Martins é extremamente lesivo ao país”.
Diversas são as denúncias envolvendo a sociedade em questão. A seguir, são enumeradas algumas: 1- A Petrobras decidiu se associar a outra empresa, em vez de explorar sozinha o novo mercado de GNL; 2- A Petrobras escolheu a White Martins para sócia sem nem mesmo consultar as outras empresas que atuam na área; 3- A Petrobras relevou o fato de existir inúmeros processos movidos pelo poder público contra a White Martins por atos lesivos ao patrimônio público; 4- A Petrobras decidiu ficar com apenas 40% da GEMINI, permitindo que a White Martins se tornasse a sócia majoritária com 60% das quotas, o que impede o TCU fiscalizar a sociedade; 5- A GEMINI contratou sua sócia majoritária White Martins para a prestação de todos os serviços necessários a produzir e transportar o GNL até aos clientes a partir de sua unidade de liquefação, situada em Paulínia (SP); 6- A Petrobras entrega à GEMINI gás natural a preços sigilosos; 7- São sigilosos os preços dos serviços prestados à GEMINI pela White Martins; 8- A GEMINI deu opção à White Martins de permanecer para sempre como a prestadora de todos os serviços demandados pela sociedade.
É de se ressaltar que – apesar de a GEMINI estar livre da fiscalização do TCU pelo fato de não ser controlada pela União – o dinheiro público continua correndo risco, pois a Petrobras é responsável pelo pagamento de 40% dos gastos feitos pela sociedade com a prestadora de serviços White Martins.
Visto que, por sua própria natureza, a SPCI não poderá agir com relação aos fatos acima denunciados, cabe apontar em quais operações da GEMINI os mecanismos preventivos da SPCI ainda poderão ser utilizados para inibir corrupção.
Ninguém pode negar que é preocupante o fato de a White Martins fazer jus a 100% do lucro auferido pelos serviços prestados à GEMINI (liquefação do gás natural, armazenagem e transporte do GNL, etc.) e a apenas 60% do lucro auferido pela GEMINI na comercialização do produto. Assim sendo, a White Martins – por simples pragmatismo empresarial – pode optar por otimizar seus lucros como prestadora de serviços, em detrimento da lucratividade da GEMINI; em outras palavras, o dinheiro público correspondente à participação da Petrobras na sociedade está na dependência de decisões empresariais da White Martins.
A propósito de contratação de prestadoras de serviços, conforme é do conhecimento de todos, qualquer empresa (pública ou privada) que contrata uma prestadora de serviços enfrenta um gravíssimo problema: a possibilidade da contratada corromper funcionários da contratante com o objetivo de aumentar ilicitamente a lucratividade dos serviços prestados. Obviamente, o problema se agrava de maneira preocupante nos casos em que a contratada para a prestação de serviços tem poder para influenciar decisões da contratante. E o problema se torna ainda mais preocupante nas oportunidades em que o poder da contratada é tão grande que ela não precisa nem mesmo se preocupar em corromper funcionários da contratante.
Diante do acima afirmado sobre os riscos inerentes à contratação de uma prestadora de serviços, diante das denúncias feitas pelo Sindipetro e diante da manifestação do Ministério Público Federal sobre a White Martins (“são pertinentes as preocupações levantadas pelo representante, pois a empresa, de fato, está envolvida em diversos episódios de malversação de recursos públicos”), lícito torna-se concluir que a contratação pela GEMINI da “prestadora de serviços sócia majoritária White Martins” foi por demais temerária.
Para demonstrar a necessidade da atuação da SPCI, basta constatar o risco que corre o dinheiro público, por exemplo, com o transporte de GNL feito pela “sócia majoritária transportadora” da GEMINI.
Como se sabe, a White Martins foi contratada pela GEMINI a preços sigilosos para transportar GNL a partir da unidade de liquefação localizada em Paulínia (SP) até as dependências dos clientes; sabe-se, também, que os clientes se encontram espalhados num raio de cerca de mil quilômetros (atualmente, o GNL já é transportado até as cidades de Goiânia e Brasília); sabe-se, ainda, que, para o júbilo da transportadora, a Petrobras lava as mãos diante do fato de estar sendo estimulado a expansão do uso de GNL em substituição à gasolina em locais distantes de Paulínia.
Considerando que quanto mais distante de Paulínia se localizar o consumidor de gás natural mais lucrará a transportadora White Martins; considerando, também, que a Petrobras se exime de responsabilidade quanto à localização do consumidor; e considerando, ainda, que, pela própria natureza humana, é de se esperar que um funcionário da GEMINI não vá se desgastar com sua sócia majoritária para defender o interesse da Petrobras, torna-se válido perguntar: não é esse um caso em que é imprescindível a atuação da SPCI em defesa dos cofres públicos?
João Vinhosa é professor e ex-Conselheiro do extinto Conselho Nacional do Petróleo (CNP)
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