O Controle da Natalidade (21/07/72)
*Eugênio Gudin Filho
Se de alguma qualidade se pode jactar o atual governo, essa é decerto a da sua unidade, sua coesão, sua coerência. Não se admitem divergências entre os vários órgãos do governo; a orientação é uma só; a opinião é uma só.
Isso se tornou bem patente nas últimas semanas, quando voltou à baila a questão do controle da natalidade. Os ministros – e dos mais competentes – que se manifestaram fizeram coro com a doutrina católica da não-intervenção preconizada pelo presidente. Se a natalidade é obra de Deus, não cabe aos homens intervir em seus desígnios.
Não que o Presidente Médici seja insensível aos sofrimentos de nossas populações desamparadas. Quando de sua visita ao Nordeste exclamou sua excelência: “Vi o sofrimento de homens moços com mais de dez filhos, nunca menos de cinco deixados lá longe, aonde não cheguei a ir. Vi crianças desassistidas ao longo do caminho”.
Para mim, que passei 12 anos de minha mocidade no Nordeste e seu hinterland, isso que emocionara tão humanamente o presidente, eu vi repetidamente com o coração confrangido. Posso mesmo dizer que isso me marcou para o resto da vida e, se não fui (e não sou) socialista, é porque nunca z\creditei n capacidade desse regime para vencer a pobreza e a miséria.
Os argumentos com que ilustres ministros agora defenderam a doutrina governamental da emissão em matéria da natalidade são de caráter econômico e expresso em termos quantitativos.
Um dos argumentos é de que é preferível gastarmos um bilhão de dólares em educação, energia elétrica e rodovias para elevar o produto nacional bruto, do que gasta-lo em controle da natalidade.
Data vênia, nunca vi nem ouvi por parte de quem quer que fosse a sugestão de se gastarem somas dessa ordem no controle da natalidade. Mais ainda, não tenho conhecimento de qualquer proposta para o governo intervenha na questão, por lei ou decreto, e sim que dispense sua simpatia e sua colaboração, diretamente ou através de instituições privadas, à tarefa de levar ao conhecimento e ao alcance das classes pobres os meios de que podem lançar mão para evitar avinda ao mundo de crianças que não desejam.
Dez e não mil milhões de dólares, mais a ajuda internacional que vier, é tudo quanto se propõe.
Um outro argumento, da mesma natureza, é de que para um país que progride à razão de 10% ao ano em seu PNB uma taxa de natalidade de 2,5% ou 3% ao ano carece de importância. Para que esse argumento fosse válido, seria preciso indicar qual a força de trabalho ou quantidade de mão-de-obra necessária para cada 1% de incremento do PNB. Em linguagem de economista, seria necessário indicar a função de produção aplicável ao país, função que não há como determinar:
a) Porque a função Cobb-Douglas, a que tem recorrido e que relaciona o produto ao capital e ao trabalho, é falha (como tem repetidamente demonstrado o economista M.H. Simonsen).
b) Porque a função de produção não é constante, como também não o é a relação capital/produto.
Se eu tivesse de dar um palpite nesse contexto, diria que a quantidade do fator trabalho tende cada vez mais a diminuir, relativamente ao capital e sobretudo à capacidade do elemento humano (ciência, tecnologia, organização). Veja-se agora mesmo nas obras de construção das rodovias da Amazônia que dezenas de milhares de trabalhadores braçais, superabundantes no nordeste, são substituídos por tratores e escavadeiras economicamente mais vantajosos.
Ainda quando fossem válidos os argumentos invocados pelos órgãos governamentais, o elemento tempo os invalidaria. Quantas dezenas de anos seriam necessárias para que o aumento da capacidade econômica do país viesse a absorver não só o imenso estoque de mão-de-obra superabundante como o constante afluxo adicional de 2,5% ou 3% ao ano?
Nesse meio tempo we would all be dead (estaríamos todos mortos), como dizia Keynes, e o triste quadro de miséria humana persistiria por muitas décadas.
Acresce, como muito bem observou o ilustre economista Rubens Vaz da Costa, que seria profundamente injusto deixar de proporcionar às classe menos favorecidas os meios de realizar o planejamento familiar, de que dispõem, graça à condição econômica e à sua instrução, as classes mais favorecidas.
*Eugênio Gudin Filho (Rio de Janeiro, 12 de julho de 1886 - Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1986) foi umeconomista brasileiro, ministro da Fazenda entre setembro de 1954 e abril de 1955, durante o governo de Café Filho.
Formado em Engenharia Civil em 1905 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, passou a interessar-se porEconomia na década de 1920. Entre 1924 e 1926, publicou seus primeiros artigos sobre Economia em O Jornal, do Rio de Janeiro.
Em 1944, o então ministro da Educação, Gustavo Capanema, designou Gudin para redigir o Projeto de Lei que institucionalizou o curso de Economia no Brasil. Nesse mesmo ano, foi escolhido delegado brasileiro naConferência Monetária Internacional, em Bretton Woods, nos Estados Unidos, que decidiu pela criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (Bird)
Durante os sete meses em que foi ministro da Fazenda (1954-1955), promoveu uma política de estabilização econômica baseada no corte das despesas públicas e na contenção da expansão monetária e do crédito, o que provocou a crise de setores da indústria. Sua passagem pela pasta foi marcada, ainda, pelo decreto da Instrução 113, da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), que facilitava os investimentos estrangeiros no país, e que seria largamente utilizada no governo de Juscelino Kubitschek. Foi por determinação sua também que oimposto de renda sobre os salários passou a ser descontado na fonte.
Ricardo Bergamini
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