Em berço esplêndido (16/02/2000)
*Roberto de Oliveira Campos
A recente republicação pela Editora TopBooks do livro do embaixador Meira Penna Em Berço Esplêndido constituiu para mim uma festa cultural de fim de ano, pela espantosa erudição do autor, um corajoso defensor do liberalismo.
Dizia o filósofo Schopenhauer que os primeiros 40 anos da vida humana são "o texto"; os 30 subseqüentes são "comentários". Nada diz sobre o resto, pois morreu aos 72 anos. Presume-se que a partir dos 70 a gente vire nota de rodapé. Orgulho-me de que na minha geração do Itamaraty sobrevivem setentões e oitentões que são campeões de erudição, como Oscar Lorenzo Fernandes (economista, matemático, filósofo e historiador), Mario Vieira de Mello (filósofo e cientista político) e José Oswaldo de Meira Penna, proprietário de cultura ecumênica, que vai da filosofia à sociologia, à psicologia e à literatura. Felizmente, nenhum deles virou nota de rodapé.
Infelizmente, nenhum deles atingiu posições de comando na máquina burocrática de nossa política externa. Zelosos de sua independência crítica, nunca se filiaram às "igrejinhas" que confundiam deformações ideológicas com Realpolitik.Durante certo tempo, inclusive em fases do período militar, um diplomata "progressista" tinha que demonstrar capacidade de saborear um coquetel maldito, com os seguintes ingredientes: uma pitada de antiamericanismo (como uma espécie de machismo residual), uma dose de esquerdismo (suficiente para provar imunidade ao capitalismo liberal), um toque de paranóia desenvolvimentista (apoio à política de informática e ao acordo nuclear com a Alemanha, que gerou mais dívidas que kilowatts), um verniz de terceiro-mundismo custoso e ingênuo (como se a liderança na gafieira compensasse a bola preta recebida no Country Club).
Esse coquetel seria impalatável para alguém como Meira Penna, que sempre preferiu Adam Smith a Karl Marx, Hayek a Keynes, Jung a Freud, o liberalismo ao socialismo. Em vez de paparicar mitos e preconceitos, dedicou-se ele à tarefa de Eutzauberung (desencantamento ou desmistificação), que Weber considerava prelúdio indispensável da racionalidade econômica. Foi o que fez em vários livros, como os de minha trilogia preferida A Psicologia do Subdesenvolvimento (1972), O Espírito das Revoluções (1997) e Em Berço Esplêndido, agora revisto em função das grandes transformações trazidas pelo colapso do socialismo. Solidários na angústia, Meira Penna e eu nos temos preocupado ao longo dos anos com a pergunta irrespondida: por que o Brasil continua pobre e subdesenvolvido? A pergunta é sobretudo vexatória agora que o país completa 500 anos, 107 anos a mais que a primeira colonização inglesa na Virgínia, da qual resultou a maior superpotência que o mundo já conheceu.
Com minha deformação profissional de economista, limito-me a explicar nosso atraso em função da "doença dos ismos": o nacionalismo (temperamental), o populismo (perdulário), o estruturalismo (inflacionário), o estatismo (intervencionista) e o protecionismo (anticompetitivo). Há inúmeras explicações sociológicas, que enfatizam fatores culturais, como a herança ibérica, ora com pessimismo racial (Oliveira Vianna), ora com uma visão condescendente da miscigenação (Gilberto Freire). Não faltam os reducionistas que recorrem a determinismos raciais ou climáticos, supostamente limitativos das civilizações tropicais.
Meira Penna é bastante original em usar o instrumental de Carl Gustav Jung para submeter nossa história a um exame de psicologia coletiva. Como é sabido, das três grandes vertentes da psicanálise, Freud enfatiza a libido pansexual, Adler o instinto do poder e Jung o dualismo entre a atitude extrovertida, voltada para o mundo exterior e a atitude introvertida concentrada sobre imagens e sensações interiores.
Meira Penna sublinha com razão a básica polarização da cultura ocidental entre um setor nórdico e um setor mediterrâneo, tendo o primeiro contribuído maciçamente para a expansão técnico/científica, e o segundo para as artes e o humanismo. Prometeu e Fausto seriam protótipos do primeiro. Epimeteu e Dom Juan, do segundo. Neste continente, os Estados Unidos e os ex-domínios britânicos seriam parte da cultura nórdica, enquanto o Brasil, com sua "civilização morena", carrega a herança mediterrânea do patrimonialismo afetivo. Contrapõem-se assim a civilização lógico-pragmática com a civilização erótico-intuicionista. Meira Penna faz uma crítica impiedosa mas salutar dos nossos vícios do familismo paternalista, da dependência do Estado como se fôssemos infantes perpétuos, e de nossa inconfiabilidade na execução contratual, em contraste com o pragmatismo racional de nossos irmãos do Norte. Este "sustenta a responsabilidade abstrata do cidadão", facilitando tanto a implantação da democracia quanto a competição no mercado.
No afã de exemplificar arquétipos junguianos, Meira Penna produziu belas passagens literárias sobre a introversão quase desumana dos personagens de Machado de Assis, capazes de paixões pessoais porém insensíveis a pessoas abstratas, sobre a energia primordial da libido descrita em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, assim como em dissertações eruditas sobre a simbologia do segundo Fausto de Goethe e do drama shakespeariano de Otelo, que simboliza a construção racional por sua sombra Iago, de um ciúme irracional e autodestrutivo. A desconstrução por Meira Penna de mitos e tabus de nossa cultura morena é uma contribuição importante para nossa transformação "liberal" tanto em política quanto em economia.
Mas fica sempre a dúvida cruel: haverá salvação para um país que em seu hino nacional se declara "deitado eternamente em berço esplêndido" e cujo maior exemplo de dinâmica associativa espontânea é o Carnaval?
*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.
Ricardo Bergamini